Resposta ao texto “PROVANDO DEUS EM TRÊS PÁGINAS”, de Paz Greemland

Responderei, neste artigo, o texto “PROVANDO DEUS EM TRÊS PÁGINAS”, escrito por Paz Greemland. O texto tem 5 páginas, das quais uma é a capa e uma é o prefácio, e as outras três páginas são divididas em I – Matéria cosmológica, II – Big Bang e III – Argumentação. Farei comentários sobre o que eu achar pertinente em cada uma das páginas e questionarei sobre as partes de que duvido ou que não entendi. Seu texto na íntegra pode ser encontrado aqui, hospedado pelo próprio autor, ou aqui, caso o link anterior tenha sido removido por algum motivo.


Prefácio

Sempre levo em consideração as análises científicas. Contudo, a ciência nada mais é do que uma forma eficiente de interpretar o mundo, sendo a lógica uma forma de entendê-lo.

A lógica não é uma forma de entender o mundo. Ela consiste num conjunto de regras segundo as quais o nosso pensamento deve se alinhar para que possa carregar consigo algum sentido. Não é possível usar a lógica pura para entender o que acontece se você deixar uma pedra cair ou como é o funcionamento de um rim. É possível explicar o funcionamento do rim de n maneiras diferentes, todas elas erradas e nenhuma delas ilógica. A lógica, portanto, não tem o poder de nos fazer entender o mundo. Ela trata apenas da forma do nosso pensamento, das possíveis relações válidas entre proposições que dizem algo sobre o mundo. O valor verdade dessas proposições, entretanto, não é obtenível apenas pela lógica. É necessário conciliá-la com nossos conhecimentos empíricos para que ela possa se aplicar a objetos da experiência, como a matemática o faz ao descrever o fenômeno da gravidade através da equação da Lei da Gravitação Universal, por exemplo. Acredito que você já saiba disso, até porque você afirma algo similar em algum momento no texto, mas achei importante pontuar isso.

Dentre minhas influências filosóficas estão Aristótelese Hans-Hermann Hoppe no campo lógico/argumentativo, René Descartes e Immanuel Kant na epistemologia e Ludwig von Mises na praxeologia.

Gostaria apenas de deixar este trecho frisado aqui.


I – Matéria cosmológica

A matéria cosmológica diz respeito a tudo o que percebemos a existência dentro do universo. Dentro deste conceito, até mesmo o vácuo seria matéria. É claro que a definição de vácuo é a ausência de matérias, mas isso diz respeito à matéria física, não cosmológica. Podemos perceber o vácuo e sabemos que o mesmo existe, mesmo que ele seja a ausência de matéria física. Aquilo que não pode ser percebido não é matéria cosmológica.*

Temos, então, que matéria cosmológica é tudo aquilo cuja existência é [ou pode ser] percebida dentro do universo. Aquilo cuja existência não pode ser percebida não é matéria cosmológica, segundo esta definição.

Nota:o vácuo absoluto(que consiste na ausência total da matéria) existe apenas em teoria. Na prática, todos os vácuos já percebidos dentro de nossa galáxia possuem algumas doses de gases (geralmente hidrogênio).

Na verdade, ele existe sim na prática. Veja, assumamos duas coisas: 1. dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço simultaneamente e 2. o movimento é possível. A primeira é evidentemente verdadeira por conta do princípio da impenetrabilidade, que é consequência de tudo aquilo que é material, isto é, que possui extensão. O segundo é verdadeiro enquanto movimento fenomênico, isto é, relativo aos objetos da percepção. A percepção da mudança do posicionamento espacial de um dado objeto empírico é possível devido à representação da forma pura do tempo, único a partir do qual a concepção da mudança pode se dar.

Isto posto, se o movimento é possível, isto é, é possível perceber que coisas se movem, e se estas coisas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço simultaneamente, então disso segue que deve haver locais no espaço isentos de matéria. Ora, como poderia o movimento, isto é, a mudança da localização espacial, ser possível sem que houvesse um espaço isento de matéria através do qual a matéria poderia se mover?  Ainda que se diga que toda a matéria ao redor do objeto se comprime para que ele se mova, se é possível que haja compressão, então isso significa que havia espaço disponível para ser ocupado pela matéria e, como dois entes materiais não podem ocupar o mesmo lugar simultaneamente, segue-se que este espaço disponível não continha matéria e era, portanto, vácuo. Isso não é importante para o ponto central do texto, mas achei interessante falar sobre isso. Prossigamos.

Mas então, é possível algo não ser matéria cosmológica? A resposta é sim, e é assim que trataremos o conceito de Deus. Como Deus é um conceito vago demais, aqui vamos defini-lo como o conceito do inquantificável, o qual transcende as noções de espaço-tempo e matéria.

Essa definição pode abranger tanto um Deus monoteísta ou os Deuses politeístas. Afinal, tomando Deus como uma transcendência total e inquantificável, logicamente é impossível quantificá-lo como um ou mais (pois o mesmo transcende as noções numéricas, físicas, lógicas, etc.).

Então Deus seria algo que transcende as noções de espaço-tempo e matéria e, portanto, como nós somos seres de intuições sensíveis e entendimento discursivo, a intuição de Deus jamais nos poderia ser dada, pois este seria imaterial. Ainda, ele é definido como “o conceito do inquantificável”. Sendo inquantificável, o argumento seria válido tanto para um deus apenas ou para demais deuses. Só nestes parágrafos já temos três problemas: 1) tratar Deus como não quantificável; 2) assumir que aquilo que não é matéria cosmológica é Deus e 3) não considerar o caráter omnipotente de Deus.

  1. Se Deus é inquantificável, então não é possível concluir que ele existe, pois as proposições “Deus existe” e “Deuses existem” podem ser expressas logicamente através do quantificador existencial de acordo com a forma (∃x)[Dx], em que Dx := “x é Deus”. Isso é exatamente a mesma coisa que dizer que existe pelo menos um Deus. É uma proposição verdadeira caso exista apenas um Deus e caso existam mais de um. Será falsa, porém, caso nenhum exista. Se a conclusão de todo o argumento, como veremos posteriormente, é a de que Deus originou o universo, então Deus deve existir. Se Deus existe, então isso quer dizer que há pelo menos uma instância de uma coisa x, seja no universo ou fora dele, denominada Deus. Isto nada mais é que quantificar Deus. Caso o autor tenha querido dizer que a quantificação de Deus é indeterminável, isto é, que não se pode saber quantos deuses existem, mas que há pelo menos um, então a afirmação da quantificação existencial de Deus se mantém, segundo a qual há pelo menos uma instância dele na realidade geral (digo geral pois não me refiro apenas à fenomênica, i.e, à que percebemos). No final das contas, a conclusão aponta para a existência de Deus.
  2. Nesta segunda assunção há um problema gravíssimo. Relembremos a definição de matéria cosmológica: A matéria cosmológica diz respeito a tudo o que percebemos a existência dentro do universo. […] Aquilo que não pode ser percebido não é matéria cosmológica.* Veja, nossa cognição [processo pelo qual o conhecimento se dá] pode ser separada em sensibilidade e entendimento. Como diz Kant, através da sensibilidade, objetos empíricos nos são dados, enquanto que pelo entendimento, são pensados. Ocorre que, como Descartes já falava, a experiência não pode nos fornecer informações verdadeiras sobre os objetos em si, isto é, sobre a forma deles independente de um sujeito observador. Podemos conhecer apenas a forma fenomênica do objeto, ou seja, o nosso modo de intuição, que está sempre submetida às condições de espaço e tempo, que, em Kant, são formas puras inerentes ao sujeito. Isso tudo significa que não somos capazes de conhecer as coisas como são em si mesmo, o noumeno, sendo este, portanto, algo incognoscível e, portanto, impossível de ser percebido sensorialmente (e, consequentemente, conceitualmente, pois estes se referem a intuições possíveis). Caso o leitor seja atento, terá percebido o problema do argumento do autor. É dito que a matéria cosmológica é tudo aquilo cuja existência pode ser percebida, e, ao questionar-se se seria possível algo que não seja matéria cosmológica, é proposto que Deus o seja, por ser imaterial e transcendente às noções de espaço e tempo. Entretanto, veja, todas as coisas em si mesmo também têm estas características! Uma pedra, como é em si mesma, não pode ser dita material, pois a matéria se restringe àquilo que percebemos, e não podemos perceber a pedra em si mesma, e ela não está sujeita às nossas noções de espaço e tempo, já que o espaço e o tempo são formas de intuição que possibilitam a experiência sensível e a pedra em si mesma não pode ser experienciada. Dessa forma, para cada coisa material, isto é, para cada matéria cosmológica, haveria um correlato cuja natureza seria matéria não-cosmológica, a saber, estas coisas materiais em si mesmas.
  3. Geralmente, quando se fala de Deus, o atributo de omnipotência é predicado a ele. O autor, entretanto, não diz se o(s) Deus(es) a que ele se refere é(são) omnipotente(s). Há uma lacuna faltando, mas podemos ver que ainda que ela fosse preenchida, os problemas continuariam existindo. Pelo princípio de não contradição, ou a proposição “Deus é omnipotente” é verdadeira ou a proposição “Deus não é omnipotente” é verdadeira. Não há o caso em que ambas são verdadeiras nem em que ambas são falsas. Elas devem, necessariamente, ter valor verdade opostos. Assim, analisemos os casos possíveis. 1) Caso Deus seja omnipotente, então isso significa que ele pode se materializar no mundo (já que ele pode fazer qualquer coisa), isto é, transformar sua própria essência em matéria e se apresentar para nós fisicamente. Se ele pode fazer isso, então é possível que experienciemos Deus e, consequentemente, percebamos sua existência dentro do universo. Se é possível que percebamos a existência de Deus dentro do universo, então ele é matéria cosmológica, por definição. 2) Caso Deus não seja omnipotente, então isso significa que há uma limitação que o impede de fazer algo. Esta limitação, portanto, deve ser maior e mais prioritária que ele no sentido de potência. Seja lá qual for a natureza desta coisa, se ela for omnipotente, então ela cai no mesmo problema que apontei no primeiro caso: ela pode fazer com que Deus seja omnipotente e, assim, é possível que ele se materialize e seja, portanto, matéria cosmológica. Se esta coisa não for omnipotente, então isso significa que há outra coisa que a limita, e isto segue ad infinitum. No final das contas, o posicionamento menos imprudente seria admitir a ignorância em relação ao assunto e dizer que não se sabe se Deus é omnipotente ou não. Porém, mesmo neste posicionamento imparcial, o argumento do autor só seria sólido caso fosse demonstrado que Deus não é capaz de se materializar, o que eu acredito que não possa ser feito.

A noção de quantidade é consequência da noção de causa, e causa é a noção de que “toda coisa equivale somente a si mesma”.

Apesar de o autor ter dito ter influências kantianas na epistemologia, todo o desenvolvimento do texto mostrou exatamente o contrário, e esta passagem é o ponto crítico disso tudo. Kant, na dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento, apresenta a tábua das categorias, que dividiria todas as categorias puras do entendimento em classes. Há quatro classes, a saber, a qualidade, quantidade, relação e modalidade. As categorias encontradas nestas classes se refeririam a priori a objetos da intuição em geral, e elas são doze. Entre elas, há a categorias de causalidade, que é uma categoria de relação. Dizer que a noção de quantidade é consequência da noção de causa é absurdo, pois a quantidade é uma classe de categorias, que contém, em si, as categorias de unidade, pluralidade e totalidade, enquanto que a noção de causa é proveniente da categoria de causalidade, que está, como eu disse, contida na classe de relação. São ambas noções primitivas, e, portanto, não pode uma delas ser derivada da outra. Ainda, a classe da quantidade faz parte da denominada classe das categorias matemáticas, enquanto a causalidade faz parte da classe denominada classe das categorias dinâmicas. A primeira, juntamente com as categorias da classe de qualidade, se refere aos objetos da intuição, tanto pura quanto empírica, enquanto que a segunda, juntamente com as categorias da classe de modalidade, se referiria à existência desses objetos da intuição, seja em relação a eles próprios ou em relação ao próprio entendimento. Assim, no background kantiano de epistemologia, não há qualquer sentido em afirmar que a noção de quantidade é consequência da noção de causa, que por algum motivo bizarro, que eu nem desejo conhecer, seria consequência do princípio de identidade.

Assim, temos Deus como a única definição imaterial possível. Não é matéria nem física, nem cosmológica. Apenas a partir dessa definição, podemos tomar logicamente Deus como o criador de tudo. Afinal, apenas transcendendo o espaço-tempo seria possível a criação do mesmo, sem cair em contradições lógicas ou raciocínios circulares como “a matéria veio da matéria, que veio de outra matéria, etc.”.

Na verdade, não. Deus não é a única definição imaterial possível, e a própria afirmação de que isso é verdade já refuta a si mesma. Ora, proposições não são materiais, bem como a relação entre as palavras que compõem a proposição também não o são. Ainda que os conceitos à que as palavras se referem, isto é, aquilo que elas significam, possam ser materiais, as palavras em si e suas relações não são. Assim, usar de palavras para dizer que Deus é a única definição imaterial possível é dar um tiro no próprio pé, pois o mero uso da linguagem (que, aliás, é imaterial) na tentativa de significar conceitos abstratos por meio de palavras já demonstra que esta ideia é errada.

Ainda, o que se opõe ao material é o formal, e há incontáveis definições formais. Absolutamente todas as definições da matemática e lógica puras são formais, pois não buscam nada em intuições empíricas, são todas conceitualizações fundadas em proposições analíticas e sintéticas a priori puras. Só isso já é o suficiente para que se verifique a falsidade da proposição segundo a qual Deus é a única definição imaterial possível, porém, podemos ir além e pensarmos em qualquer definição que não se refira a objetos materiais, como as definições da linguagem (o que é um advérbio, uma locução verbal, um substantivo, uma predicação), da essência das coisas (que seria formal), ou mesmo de coisas como o espírito ou a alma, ainda que estas coisas não existam (definir uma coisa não implica na existência dela). Acredito ter deixado mais que claro que esta ideia é absolutamente errada, e a ideia de não considerar Deus como matéria cosmológica já foi refutada em uma resposta anterior. Ah, e sobre a última frase, isso não seria um argumento circular, mas sim uma regressão infinita. E não há justificativa lógica para que uma regressão infinita não possa ocorrer. O argumento segundo o qual a regressão temporal infinita é impossível porque, de outra maneira, o presente jamais seria presenciado é falho, pois, analogamente, o conjunto dos números reais é infinito tanto para o negativo quanto para o positivo, e qualquer número real é determinável. O mesmo vale para a representação temporal numa linha que se prolonga ao infinito (o que, aliás, é a analogia que Kant faz em B50, ao falar sobre a idealidade transcendental do tempo na estética transcendental).

Tudo que é material segue uma causa e efeito, portanto nada que é material pode iniciar a si mesmo. Assim, apenas transcendendo a quantificação é possível criar o infinito.

Há um outro gigante problema aqui, principalmente para quem afirma ter influência kantiana na epistemologia. Este parágrafo disputa o ápice das ideias contrárias ao Kant com o anterior.

No segundo livro da dialética transcendental da Crítica da Razão Pura, quando Kant fala sobre os raciocínios dialéticos da razão pura, ele expõe, entre outras coisas, a impossibilidade da prova da existência de Deus. Segundo ele, há três tipos de argumento que se proporiam a provar Deus, um dos quais foi utilizado pelo autor do texto no parágrafo mencionado. Trata-se da prova físico-teológica. Nas palavras de Kant, os argumentos que seguem o modelo desta prova partem da experiência determinada e da natureza particular do mundo dos sentidos, que ela dá a conhecer, e daí ascendem, segundo as leis da causalidade, até à causa suprema, residente fora do mundo. O problema disso tudo é bastante simples.

Como já falei, a causalidade é uma categoria pura do entendimento, mediante a qual as conexões causais entre objetos da intuição pode se dar. Ocorre que, como toda e qualquer categoria pura do entendimento, ela não tem outro uso para o conhecimento das coisas senão o seu uso aplicado a objetos da experiência (§22). Ora, isso significa que todas as leis da passagem dos efeitos para as causas reportam-se unicamente à experiência possível, por conseguinte, a objetos do mundo dos sentidos e só com referência a estes podem ter uma significação (B650). Se Deus não é um objeto da experiência, por ser metafísico, imaterial, transcendente, noumênico, então não é possível que nós, através de análises causais fenomênicas, concluamos sua existência. Trata-se de um salto lógico imenso. No máximo daria para argumentar que os fenômenos têm uma causa primordial, mas isso não diz respeito às coisas em si, à verdade universal, mas sim sobre a forma com que nós podemos conhecer o mundo, e disso não se pode extrair a existência de um ser que transcende tudo isso.

Toda matéria, por ser dependente, necessita de origem. Ao negar isso, você estará caindo no raciocínio infundado de que “tudo veio do nada”, o que é uma contradição lógica, pois ao tratar o “nada” como predicado, o nada já não é mais nada e voltamos ao raciocínio circular. E se você se refere ao “nada” como o “imaterial”, então a questão é essa: Deus é imaterial. E a partir do imaterial e transcendental, é possível se criar o infinito e a matéria.

Como já expliquei no parágrafo anterior, o argumento causal não tem capacidade de afirmar coisas para além da experiência, porém, há neste parágrafo mais três problemas: 1) falácia do falso dilema; 2) confusão em relação a predicação e 3) confusão em relação ao imaterial e transcendental.

  1. O autor comete a falácia do falso dilema, ou falsa dicotomia, ao apresentar duas situações opostas como se fossem as únicas, sem considerar a possibilidade de outras situações, como a real inexistência de causas (o que não significa que o nada é a causa, porque não há causa alguma). O argumento, aliás, já foi refutado por Hume em seu Tratado da Natureza Humana (Livro 1, parte 3, seção 3, §6). É dito que ao negar que toda matéria necessita de origem, afirma-se que tudo veio do nada. Além de falacioso, isso não faz o mínimo sentido, pois, como disse Hume, ao se negar que toda matéria possui uma origem, exclui-se de fato qualquer causa, e não se supõe que o nada ou o próprio objeto sejam causas do objeto. Se é dito que o nada é a causa dos objetos que não têm causa, há uma contradição, pois o nada, nesta proposição, têm caráter de sujeito agente, e ainda que seja considerado uma classe sem membros ou mesmo uma ideia abstrata, nesta proposição ele é algo.
  2. É dito que ao se tratar o nada como predicado, o nada já não é mais nada. Porém, em momento algum o nada foi tratado como predicado. Na proposição “tudo vem do nada” (que nem deveria ser usada, pois foi assumida mediante a falácia do falso dilema), o sujeito é “tudo” e o predicado é “vem do nada”. O “nada” não é predicado, ele faz parte do predicado. Se o nada fosse predicado (gramatical) de tudo, então estar-se-ia atribuindo uma relação de identidade entre o nada e o tudo, o que não é feito. A característica que se predica ao sujeito “tudo” é a gênese a partir do nada, ou seja, “vir do nada” é uma predicação do sujeito “tudo”, e não o “nada” puro.
  3. Afirmar que a partir do imaterial e do transcendental é possível se criar o infinito e a matéria é um tanto quanto curioso. Isso implicaria em todos os princípios transcendentais da cognição humana (espaço, tempo, todas as categorias do entendimento) serem capazes de ‘criar’ o infinito e a matéria. Como o autor é hoppeano, pode-se dar um exemplo do argumento do próprio Hoppe. Como, segundo a ética argumentativa, o reconhecimento do direito de autopropriedade é transcendental à atividade argumentativa, e como o reconhecimento é formal, então se a partir daquilo que é imaterial e transcendental é possível se criar o infinito e a matéria, segue que a partir do reconhecimento do direito de autopropriedade é possível se criar o infinito e a matéria (o que viola a lei da conservação das massas, de Lavoisier, inclusive, já que o autor gosta de ciência). Pode parecer que fiz um espantalho com o argumento, mas eu apenas peguei as definições usadas e mostrei a absurdidade que é capaz de ser gerada a partir dele.


II – Big Bang

A matemática, por exemplo, é um conhecimento apriorístico. Contudo, para usá-la, precisamos utilizar nossas percepções sensoriais humanas para realizar um cálculo ou até mesmo representar números. Mas o ponto é que nenhuma dessas percepções é falseável.

A matemática é, de fato, conhecimento a priori, o que significa que tais conhecimentos independem da experiência para se darem. Isso significa que não precisamos utilizar de nossas percepções sensoriais para realizar um cálculo. Precisamos, sim, da experiência para aprendermos os conceitos de número, soma, igualdade e quantidade, pois, apesar de estes conceitos se fundarem nas categorias puras do entendimento, estas são vazias se não lhe são apresentadas intuições. Entretanto, uma vez obtidos os conceitos, não precisamos da nossa faculdade sensorial para desfrutar da espontaneidade do entendimento em relação aos conceitos já obtidos, que se referirão a intuições prévias. Talvez precisemos das percepções para representarmos números, depende do tipo de representação. Se for uma representação física, como uma instanciação de um ou mais números na forma de objetos físicos, ou como representação simbólica numa folha de papel, sim. Mas a representação conceitual não necessita que se tenha percepções sendo recebidas, desde que as intuições às quais os conceitos se referem já existam no sujeito. Não entendi o que o autor quis dizer com “nenhuma dessas percepções é falseável”.

Voltando ao Big Bang: a teoria é muito bem elaborada através do método científico. Contudo, é irrelevante por enquanto sua elaboração científica. Toda a teoria parte de uma premissa: todo o universo surgiu a partir de uma singularidade. Essa singularidade, sendo de existência perceptível dentro do universo, seria então matéria cosmológica.

Isso entra em contradição com a própria definição do autor de matéria cosmológica. Lembrar-nos-emos novamente, matéria cosmológica diz respeito a tudo o que percebemos a existência dentro do universo, ou seja, aquilo que não pode ser percebido não é matéria cosmológica. Para que a matéria seja percebida, é necessário que haja um sujeito que a perceba. Este sujeito deve ser material, pois estamos tratando de entidades com sensibilidade intuitiva, como a nossa, o que só pode se dar materialmente. Se o universo surgiu a partir de uma singularidade, isso quer dizer que tudo o que existe hoje já se encontrava naquela singularidade. Para que esta singularidade seja uma matéria cosmológica, é necessário que ela seja passível de ter sua existência experienciada no universo. Porém, veja, é justamente dela que o universo surge. Isso significa que toda a matéria que comporia um possível sujeito cognoscente estaria dentro dela. O que quer dizer, em outras palavras, que ela não pode ser experienciada por não haver um sujeito que a possa experienciar e por o universo ainda não existir, já que ele surge dela. (Nem vou entrar na questão da impossibilidade física da existência de um sujeito como um humano numa singularidade aqui). Em suma, a singularidade não pode, jamais, ser uma matéria cosmológica.

Uma vez que a criação do universo está condicionada à matéria cosmológica, a quê está condicionada a criação da matéria cosmológica? Afinal, ela já é presente e perceptível dentro do universo (até mesmo no Bóson de Higgs). Como dito no capítulo anterior, tudo que é material segue uma causa e efeito. Consequentemente, nada que é material pode criar a si mesmo.

Vamos chamar este problema de “problema da quantificabilidade”. Mesmo a primeira singularidade ou o Bóson de Higgs, por serem matéria cosmológica e estarem sujeitos ao espaço-tempo e causa-efeito, possuem a necessidade inerente de terem sido iniciados. Afinal, algo material não inicia uma cadeia causal partindo do nada. Tudo que é matéria, para mover, necessita ser movido. Não há como o material se iniciar, pois o mesmo segue a causalidade.

Diga-me, como é que a criação do universo está condicionada à matéria cosmológica se a matéria cosmológica diz respeito àquilo que é passível de ser um objeto de uma experiência possível no universo? É justamente o contrário: é a matéria cosmológica que existe em função da existência do universo, não o contrário. As frases sobre causalidade já foram respondidas: o princípio causal fornece informações fenomênicas, de experiências possíveis, insuficientes para a conclusão da existência de um ser que as transcende, como Deus.

Portanto: apenas algo imaterial pode ter iniciado a cadeia causal do universo. Ou seja: o universo se origina no imaterial. Soa como um paradoxo, mas é possível resolvê-lo através do conceito previamente estabelecido de Deus.

Esta conclusão é falsa, como já dito anteriormente. Não foi assumido como possível o caso da regressão causal infinita. Novamente, não há contradição lógica que todo evento tenha uma causa e toda causa se funde numa causa prévia, sem que haja uma causa primordial. O argumento que afirma que isso é impossível porque se a seta temporal para o passado fosse infinita, o presente não seria possível é falho, e demonstrado fracassar ao se fazer uma analogia com uma linha prolongada ao infinito e que, porém, têm cada um de seus pontos constitutivos determináveis. E não há paradoxo algum aí, pelo menos não no sentido adotado pela lógica, que seria um argumento cuja validade implica em sua invalidade, e cuja invalidade implica em sua validade, simultaneamente.


III – Argumentação

Agora que já estabelecemos e organizamos o conhecimento relevante, podemos realizar o silogismo. Afinal, apenas através da argumentação pode ser feita uma proposição verdadeira ou uma justificação.

Não sei que definição de argumentação foi usada aí, mas é provável que, seja ela qual for, esta proposição está errada. Se por argumentação você quer dizer o processo de se argumentar, isto é, de se desenvolver e expor um argumento, então isso está ridiculamente errado, pois os próprios argumentos são formado por proposições. Dizer que apenas através de argumentos se pode fazer uma proposição verdadeira é o cúmulo do absurdo, uma vez que estas possibilitam que aquele exista. Caso seja adotada a definição hoppeana de argumentação, então a ideia também está errada, pois é plenamente possível fazer (pensar, formular, emitir) uma proposição verdadeira fora da argumentação, como aquelas que o autor afirmou ter feito ao fazer autorreflexão e concluir a infalseabilidade da existência da matéria, por exemplo. Autorreflexão não consiste numa argumentação, para o Hoppe. Caso tenha sido usado algum outro significado de argumentação, o que eu duvido, então não sei, precisaria conhecê-lo para afirmar algo a mais. De qualquer forma, isso não é relevante para minha crítica ao texto.

Com base nos capítulos anteriores, podemos concluir que o universo, por ser composto de matéria (seja ela física ou cosmológica), é quantificável.

[…]

1-1:O universo é quantificável;
1-2:A definição do inquantificável é Deus;
1-3:A origem do quantificável necessariamente é inquantificável;
Conclusão: a origem do universo é Deus.

Há uma contradição aqui. Foi dito, no começo do texto, que Deus não é quantificável, e que, portanto, o argumento seria válido tanto para concluir a existência de um único Deus quanto a de vários deuses, pois não seria possível conhecer o número de deuses. Isso quer dizer que aquilo que é quantificável é passível de ser representado numericamente. Porém, não podemos conhecer a totalidade da matéria do universo e, portanto, não podemos quantificá-lo. Isso significa que ou você abandona a premissa de que o universo é quantificável, ou você abandona a definição de que quantificável é aquilo que se pode definir por um número. Se a premissa for abandonada, então o primeiro silogismo é incorreto porque a primeira premissa é falsa. Caso seja abandonada a definição de que quantificável é aquilo que se pode definir por um número, então a segunda premissa do primeiro silogismo é falsa, o que também faz com que ele seja incorreto. Como é necessário que se escolha uma destas opções, pois, do contrário, haverá uma contradição, então disso segue que o primeiro silogismo está errado, independentemente da escolha feita. Caso não seja feita escolha alguma, então todo o argumento é falho porque cai numa falácia semântica, já que a mesma palavra é usada com dois significados diferentes no mesmo texto.

2-1:O universo é material;
2-2: A definição do imaterial é Deus;
2-3: A origem do material necessariamente é imaterial;
Conclusão: a origem do universo é Deus.

Este argumento é incorreto porque a segunda premissa é falsa. A definição do imaterial não é Deus. Deus é uma das coisas que é imaterial, mas não é a única. Palavras, pensamentos, ideias, conceitos, números, figuras geométricas, essência, moral, lógica, matemática e mais uma infinidade de coisas também são conceitos imateriais.

3-1: O universo está sujeito ao espaço-tempo;
3-2: A definição da transcendência do espaço-tempo é Deus;
3-3: A origem do espaço-tempo necessariamente transcende o espaço-tempo;
Conclusão: A origem do universo é Deus.

Aqui o autor nega novamente sua dita influência pelo Kant em epistemologia. Em relação ao universo, somos capazes de fazer afirmações pertinentes ao mundo dos fenômenos apenas, isto é, àquele mundo que nos é apresentado mediante intuições sensíveis, pelos órgãos sensoriais. Ainda, em Kant, o espaço e o tempo são formas puras de intuição sensível, ambas faculdades da sensibilidade, únicas através das quais se é possível ter uma experiência possível. Dessa forma, se o espaço e o tempo são formas puras a priori impressas no sujeito e que possibilitam somente a experiência sensível, não o conhecimento das coisas em si, então as coisas em si estão além dos limites de nossa percepção e, portanto, além do espaço e do tempo. São transcendentes (e não transcendentais) ao espaço e o tempo, e não são Deus. Portanto, a segunda premissa está errada e, assim, o terceiro silogismo é igualmente incorreto.


Dessa forma, acredito ter exposto minuciosamente cada ponto fraco do texto. Bem como todas os outros argumentos em relação à existência de Deus que já vi, tenho certa empatia com a tentativa de se provar a existência d’Ele, porém, isto é uma atividade falha, pois trata-se do uso inadequado da razão e da linguagem na tentativa de se alcançar coisas que estão além de toda a compreensão possível. Sem mais para o momento.


* Este esclarecimento me foi feito pelo autor do texto no canal #voice do servidor do Discord Fraternidade Hoppeana, em 19/01/2019, às 08:10. Não se encontra no texto original.

5 comentários em “Resposta ao texto “PROVANDO DEUS EM TRÊS PÁGINAS”, de Paz Greemland

  1. Ótimo texto, Nicholas. Sério cara, adorei! Muito bom. A propósito, diferentemente de mim, você tem um ótimo conhecimento da epistemologia de Kant e afins; e, por isso, queria saber sua opinião a respeito da neoescolástica, que tenta, sobretudo, unir o criticismo de Kant à filosofia tomista. No texto você expôs, além da ótima resposta ao texto em questão, ter um ótimo conhecimento a respeito de Kant; eu, em partes, compreendi um pouco do ponto de vista de Kant, pelo que você apresentou no texto, a respeito da impossibilidade de provar a existência de Deus tendo como princípio a causalidade. Pois, por se tratar de uma categoria pura do entendimento, que é e deve ser utilizada somente aos objetos da experiência, ou seja, fenômenos, a causalidade não poderia ser aplicada à noúmenos, como Deus, sem que se perca o total sentido; senão por um mero salto lógico, como você disse. Basicamente, pelo que ouvi dizer, o intento do neotomismo é, creio eu, superar este problema, ou seja, unir a própria filosofia kantiana ao pensamento de Santo Tomás. Porém, como nem tudo na vida são flores, eu basicamente não sei nada nem a respeito de Kant, pois pouco o li senão umas 30 páginas inicias de Crítica da Razão Pura, e do próprio São Tomás, que tão somente conheço as noções primitivas da filosofia aristotélica-tomista: ato e potência; movimento; essência, ente (ens), ser (esse) e substância – sendo que a este últimos aspectos sequer sei direito. E é devido a este desconhecimento que tenho minhas dúvidas acerca da filosofia tomista para fins apologéticos, isto é, se possui validade ou não para provar a existência de Deus. E, por saber que você tem um ótimo conhecimento e domínio do assunto, vim lhe perguntar qual seu ponto de vista a respeito. 🙂

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    1. Que bom que gostou do texto! Não sei praticamente nada de escolástica, muito menos de neoescolástica. Ouvi falar há algumas semanas sobre um grupo de pessoas que estariam escrevendo sobre esta conciliação entre criticismo e tomismo, e fiquei até curioso para saber como se daria o argumento, mas só ouvi dizer, mesmo. O que você falou sobre a inadequação da causalidade a Deus é isso aí mesmo: ela só é válida para objetos experienciáveis e, portanto, aquilo que é transcendente, que foge a nossa capacidade de cognição, não pode se adequar a este princípio.
      Sobre Aquino, o máximo que li foram algumas poucas passagens da Suma Teológica, e olhe lá. De qualquer forma, apesar de eu ser cristão, sou um tanto quanto cético a respeito de argumentos que provariam a existência de Deus. Sendo Deus onipotente (e rejeito a definição de onipotência usada pelo Aquino), não vejo como poderia um argumento logicamente construído nos levar à conclusão de que Deus existe, pois, se assim ele é, então não há por que ele obedecer às leis da lógica e, portanto, não haveria necessidade de o argumento ser válido. Mas aí acredito já estar falando demais sobre o que está além dos limites da linguagem e da razão (falar sobre um ser que pode fazer o que não pode ser feito, por exemplo).
      Obrigado pelo comentário!

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  2. Excelente texto.
    Senhor Nicholas, gostaria de aproveitar o espaço para lhe fazer 2 perguntas:

    1°) Conheces a “Demonstração Ontológica” de Kurt Gödel?
    2°) O trabalho de Gödel cumpre com o seu propósito (provar, usando a linguagem lógica, Deus utilizando o argumento ontológico)?

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  3. Fala aí. Sim, conheço a demonstração, mas ela é bem complicada e a plausibilidade dos axiomas é talvez tão questionável quanto a da conclusão, então não sei se ele cumpre seu propósito…

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  4. ótimo texto! Agora eu queria saber sobre o que você acha do tema em si, não se é possível provar Deus, mas da existência dele. Em suma, você é ateu, agnóstico, teísta, deísta?

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