Resposta ao texto “Refutação do libertarianismo anarco-capitalista”, de Pino Creed

Autor: Nicholas Ferreira

 

         Responderei, neste artigo, o texto “Refutação do libertarianismo anarco-capitalista”, escrito por “Pino Creed” e postado em seu perfil no Facebook. O autor expõe seus argumentos contra o libertarianismo e a praxeologia em 5 pontos, os quais serão citados aqui e respondidos em seguida. O texto na íntegra pode ser encontrado em sua publicação no Facebook[1] e no Pastebin[2], onde eu o hospedei para evitar que ele fosse perdido caso a postagem original saísse do ar.

         Linguagem

         O autor do texto se confunde várias vezes, trocando a semântica de algumas palavras utilizadas na defesa das ideias libertárias, usando, em vez disso, definições usuais, do dia a dia, o que caracteriza boa parte do texto como falácia semântica, ou falácia do espantalho, já que, se alguém se propõe a refutar uma ideia, o mínimo esperado é que a refutação seja feita no mesmo nível semântico que o autor da ideia criticada, ou seja, que as palavras usadas façam referência às mesmas ideias. Do contrário, qualquer um poderia refutar qualquer proposição não tautológica. Por exemplo, posso provar que a proposição “A soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa num triângulo retângulo” é falsa, e isso é evidente, já que “catetos” e “hipotenusa” são a mesma coisa, segundo a minha definição. Assim, essa proposição estaria afirmando que o a soma dos quadrados de um número é igual ao quadrado desse número, o que é um absurdo! Onde Pitágoras estava com a cabeça ao pensar nisso?!

         Se você for perspicaz, perceberá o erro grotesco no qual esta forma de pensamento incorre: a mudança de significado das palavras em uma frase pode alterar absolutamente seu significado. Pode-se objetar este ponto dizendo que certas palavras já têm significados muito bem definidos e conhecidos por todos, como “céu” ou “triângulo”, e que, portanto, tais significados devem ser assumidos em todas as vezes em que tais palavras forem usadas. Isso é verdadeiro na maioria dos casos, são as definições lexicográficas; porém, não no caso em questão, em que as palavras já são definidas pelos autores antes ou no decorrer da exposição dos argumentos.

          De maneira bem simplória, a definição de um termo, no final das contas, não passa da atribuição de um significado, um conceito, uma ideia ou características a um símbolo específico, que, no caso de nossa linguagem, são as palavras. Quando lemos um texto sobre física nuclear e o autor define “massa crítica” como sendo a massa (no sentido de propriedade da matéria) de material necessária para manter uma reação de fissão nuclear em cadeia autossustentada, então sabemos que em todas as vezes em que esse for usado, ele se refere ao conteúdo exposto na definição. Seria imprudência, por parte de um sociólogo, se ele fizesse uma crítica ao texto, dizendo que “massa crítica” significa, na verdade, a mentalidade de um grupo, em relação a determinado assunto, necessária e suficiente para desencadear um determinado fenômeno, e que, portanto, o texto está errado. É óbvio que o leitor e autor, neste caso, estão usando os mesmos termos para se referirem a coisas absolutamente distintas. O propósito de definir uma palavra, além de vários outros, como o esclarecimento de um termo, é a eliminação de ambiguidade[3], e quando a definição é feita em um texto, por mais que sua adequação possa ser criticada, o mínimo esperado é que ela seja usada na compreensão das ideias expostas no texto, em vez de ter seu significado modificado pelo leitor.

        Por esse motivo, antes de começar o texto, é preciso que falemos a mesma linguagem. Assim, darei as definições de certas palavras-chave e explicações de conceitos que são usados pelos autores criticados no texto, afim de desambiguar qualquer proposição por eles exposta. As definições podem ser encontradas nos próprios livros e artigos em que as ideias criticadas foram expostas e serão todas indicadas nas respectivas notas de rodapé.

Ação humana: Ação humana é comportamento propositado. Também podemos dizer: ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida. Estas paráfrases podem esclarecer a definição dada e prevenir possíveis equívocos. Mas a própria definição é adequada e não necessita de complemento ou comentário.[4]

Agressão: Se uma ação executada indesejadamente invade ou altera a integridade física do corpo de outra pessoa, fazendo um uso dele que não agrada a esta outra pessoa, essa ação, de acordo com a posição natural em relação à propriedade, é chamada de agressão.[5] A ética capitalista define agressão como invasão da integridade física da propriedade de outra pessoa.[6]

Escassez[7]: Os meios são, necessariamente, sempre escassos, isto é, insuficientes para alcançar todos os objetivos pretendidos pelo homem. Se não fosse assim, seria desnecessária qualquer ação humana para obtê-los. Se não houvesse a insuficiência de meios, não haveria necessidade de ação.[8] Se não houver escassez, e todos os bens forem chamados de “bens gratuitos”, cujo uso por qualquer pessoa para qualquer finalidade não excluísse (ou interferisse ou restringisse) de alguma maneira seu uso por qualquer outra pessoa para qualquer outro propósito, a propriedade, então, não seria necessária.[9]

Vontade: O termo vontade significa nada mais do que a faculdade do homem de escolher entre diferentes situações; preferir uma, rejeitar outra, e comportar-se em consonância com a decisão tomada, procurando alcançar a situação escolhida e renunciando a outra.[10]

Troca: Qualquer ação é uma tentativa para substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Denominamos troca a uma alteração voluntariamente provocada. Uma condição menos desejável é trocada por outra mais desejada. Abandonamos o que nos satisfaz menos, para obter algo que nos agrada mais.[11]

Liberdade: No sentido praxeológico, o termo liberdade refere-se à situação na qual um indivíduo tem a possibilidade de escolher entre modos de ação alternativos. […] A liberdade de um homem é rigidamente restringida pelas leis da natureza, bem como pelas leis da praxeologia.[12]

 

Feito isso, podemos começar.

1 – AÇÃO HUMANA NÃO É UM AXIOMA

O problema da ação humana está no fato de eu estar apenas experienciando internamente a minha pessoa, não a de outro; como posso testar que outra pessoa realmente esteja agindo? Ela pode muito bem ser um zumbi filosófico, logo qualquer experiência externa cai por terra.

           De fato, podemos experienciar internamente apenas os fenômenos de nossa pessoa, enquanto sujeitos[13]. Não temos acesso direto à mente de outros indivíduos, à forma com a qual eles pensam, pelo menos não com os recursos tecnológicos que temos até então. Assim, realmente, não podemos saber com rigorosa certeza se as demais pessoas realmente têm propósitos para suas ações, se elas raciocinam, formulam juízos ou tem emoções. Por conta da mesma limitação epistemológica, também não podemos saber se os animais são movidos puramente por instinto ou se há algum propósito racional em suas “ações”[14]. Não sabemos se os animais se comunicam entre si, se eles têm alguma forma de sentimento ou qualquer outra coisa do tipo, apesar de a ciência nos apontar algumas evidências de similaridade neurológica entre animais e humanos – o que, por  conta de nosso atual cepticismo, não deve ser levado à sério, afinal, toda a ciência se baseia no método indutivo, e nada nos dá certeza de que os conhecimentos com ela descobertos serão válidos amanhã, ainda que todos os testes prévios nos façam acreditar que assim o serão.

         Na verdade, como podemos tomar consciência direta apenas de nossos pensamentos, já que os dados obtidos por intuições sensíveis passam pelos sentidos, que são variáveis de indivíduo para indivíduo, e que distorcem a realidade das coisas em si mesmo, então não é possível saber se todo o resto além de nós mesmos existe em si mesmo ou se é tudo pura criação de nossa mente. Além disso, os mesmos pensamentos e intuições sensíveis externas que temos enquanto estamos despertos nos podem ocorrer enquanto dormimos, com a diferença de que, neste caso, as ditas intuições sensíveis externas seriam, na verdade, internas, pois não haveriam, de fato, objetos sendo percebidos, mas sim o próprio entendimento sintetizando as experiências prévias do sujeito no sonho (o que pressupõe, obviamente, como mostrou Kant[15], percepções reais prévias, mas não assumirei isto aqui para não alongar a discussão).

             Consideremos que a mente tem a capacidade de gerar ‘percepções’ independentes do mundo físico. Se isso é possível, então não temos como saber se o que estamos percebendo neste momento é mais verdadeiro ou ilusório que aquilo que acreditamos perceber enquanto sonhamos.[16]

Qual o problema?

         Aparentemente vivemos num universo de incertezas, em que nada é passível de ser conhecido em si, a não ser nossa própria existência e o fato de experienciarmos coisas que nos parecem ser externas a nós mesmos, bem como Descartes concluiu após aplicar sua dúvida metódica. Assumindo todo esse cepticismo como válido, e assumindo que somos humanos (na verdade, que o leitor deste texto é humano, já que não podemos ter certeza das demais pessoas), então questiono a indagação feita no texto: por que a limitação epistemológica em saber se há propósito nas supostas ações de outras pessoas faz com que o axioma da ação humana deixe de ser um axioma? Digo, se você for o único ser humano, você age de maneira propositada, o que é inegável, pois está lendo este artigo, o que é uma ação propositada, e agiria para tentar contestar a afirmação anterior, demonstrando-a verdadeira. Se você não for o único humano – ou seja, se outras pessoas também forem humanas, mesmo que você não saiba –, então você e as outras pessoas agem propositadamente, o que seria inegável da mesma forma. Em outras palavras, a validade do axioma da ação não depende da sua capacidade de testar se os outros indivíduos são agentes de fato, bem como a validade da lei da identidade não depende da sua capacidade de testá-la em Plutão para saber se ela funciona lá. O axioma apenas nos mostra que H →A(H), sendo H: “humano” e A(x): “x age”, e seu caráter transcendental é autoevidente.

Ora, veja que uma mente consciente não existe por si mesma, isto é, ela é dependente de alguma coisa física, ou seja, um corpo. Então podemos observá-la enquanto fenômeno externo. Se podemos observá-la assim, isso não quebra o problema de eu só poder experienciar alguém fora de mim por meio da minha intuição externa (ou seja, no espaço – onde está incluso as inúmeras características em comum). Logo, enquanto eu não puder experienciar internamente outro ser consciente, então não poderei ter certeza de que é de fato consciente. Então, do ponto de vista externo, o sujeito a que me refiro estará sempre na mesma posição de um zumbi filosófico, ou seja, não poderei saber se é consciente ou não apenas me baseando em semelhanças (já que o zumbi filosófico também comporta as mesmas semelhanças).

         Curioso uma afirmação desse tipo vir logo após uma sutil dose de “solipsismo subjetivo” (no sentido de considerar duvidosa a individualidade de outrem). Se, como o autor afirmou, só podemos experienciar nossas próprias mentes em primeira pessoa, enquanto que, em outras pessoas, podemos ver apenas a manifestação da vontade da mente através das ações corporais, e se após a morte não há mais manifestações da vontade no indivíduo morto, então afirmar que a existência da mente é dependente do corpo não é um argumento logicamente válido, pois há um caso em que a conclusão não segue das premissas: o caso de ((P → Q) → (Q → P)) em que P:“há manifestação da vontade”=F e Q: “há mente”=V, tornando claro que o argumento do autor incorre na falácia lógica da comutação dos condicionais, o que significa que, à partir das dadas premissas, não é logicamente necessário exista um corpo para uma mente existir. Isso não significa que o corpo não é necessário para a existência da mente; significa, apenas, que não se pode chegar à essa conclusão logicamente a partir das premissas dadas.

         Entretanto, podemos inferir, com certa perspicácia, através de testes empíricos, que há alguma relação entre a mente e o corpo, mas afirmar que este é condição necessária para a existência daquela, que não existe por si mesma, é tão certo quanto dizer que existem sapos orbitando a galáxia de Andrômeda: o valor verdade de ambas as proposições está fora do alcance de nosso conhecimento, pelo menos até então.

 

Alguém pode dizer: “A praxeologia é válida para toda e qualquer mente.”

         Quem disser isto estará errado. Ela é válida para toda e qualquer mente humana, enquanto embarcada num corpo físico, submetido às leis físicas que regem nosso universo de escassez. Uma mente imaterial, caso exista, não é objeto de estudo da praxeologia, pois sua existência não seria dependente de recursos físicos, os quais não seriam tomados como meios para ações, que não existiriam, nos termos definidos.

         A mente humana, enquanto estando conectada a e fazendo parte de um corpo material, sendo ela uma coisa existente em si mesma ou algo inerente à própria matéria que compõe o corpo (o que é uma distinção completamente irrelevante para a praxeologia), é capaz de perceber o mundo, compreender as relações das coisas que estão ao seu redor, formular juízos acerca dos objetos que a rodeiam, tomar consciência do seu estado de satisfação e especular quais ações seriam adequadas, naquele momento, e quais os melhores meios disponíveis devem ser usados a fim de reduzir o desconforto e aumentar o estado de satisfação. Perceba que falo da mente enquanto conectada com o corpo físico, não como uma substância metafísica pensante, à la Descartes.

Sem mencionar que também vejo que uma mente como a de um Ser Supremo, ou seja, Deus, não segue as regras de uma mente contingente e limitada, e ainda assim é uma mente necessária e portanto ilimitada. Esse pensamento não entra em contradição, logo é possível que exista uma mente cuja natureza é tal que não siga a praxeologia.

Concordo, e Mises também.[17]

Alguém ainda pode apelar e dizer: “O próprio ato de tentar refutar a praxeologia já segue o axioma da ação”, ora, errado. Isso é no máximo uma EVIDÊNCIA, não uma PROVA definitiva.

Portanto, a ação humana de Mises é uma hipótese. E hipóteses não são axiomas.

         Nunca imaginei precisar ter de responder a isso, mas, de qualquer forma, isso se trata, sim, de uma prova definitiva. Negar que indivíduos agem usando meios para atingir fins hipotéticos, ou que sempre se busca sair de um estado de menor satisfação para um de maior satisfação, tem como condição formal a formulação de juízos na mente do indivíduo pensante, com a posterior implicação material desses juízos, expressa na forma de ação, cujo conteúdo nega suas próprias pressuposições pragmático-transcendentais, o que demonstra uma gritante contradição performativa, tão evidente quanto nas afirmações “eu não existo”, “pessoas não têm preferências”, “proposições não existem”, “linguagem não existe”, “estou morto” e várias outras afirmações autoinferentes e autocontraditórias.

         Talvez se objete a explicação acima dizendo, novamente, que mesmo que a categoria da ação seja pressuposta para se opor à praxeologia, isso apenas demonstraria que os indivíduos que se opusessem a ela estariam agindo, mas que nada poderia ser inferido sobre os demais. Acontece que, além de ela ser pressuposta para se opor à praxeologia, a categoria da ação também é pressuposta para se agir de qualquer outra forma, o que é tautológico. Todas as ações praticadas por um indivíduo em toda a sua vida, inclusive aquelas necessárias para a sua existência (que o autor critica, posteriormente), demonstram – para o agente – e evidenciam – para os observadores – que este indivíduo age de fato.

         É importante notar que o primeiro ponto é uma limitação epistemológica real: não conseguimos saber se os demais indivíduos realmente são seres autoconscientes, se possuem mentes como a nossa, da mesma forma que não conseguimos saber se uma pedra tem sentimentos, ou se cães entendem a lógica, ou se as coisas continuam existindo mesmo quando nós não as percebemos, e várias outras incertezas. Porém, se é dito que H→A(H) é verdadeiro, o que é autoevidente para o caso da ação humana, então sua validade não depende do quanto de conhecimento nós temos sobre cada um dos objetos em que a instância “H” se faz presente. Em outras palavras, não precisamos conhecer todos os indivíduos internamente para sabermos que se eles são humanos, então agem, da mesma maneira que não precisamos verificar todos os números possíveis para x para sabermos que a proposição (∀x ∈ R, x²≥0) é verdadeira, isto é, que dado um número x qualquer, se ele for real, seu quadrado é maior ou igual a zero. Isto é cognoscível a priori.

2 – NEM TODA AÇÃO É VOLUNTÁRIA

Toda a teoria libertária anarcocapitalista se baseia num suposto voluntarismo. Dizem os ancaps que agir voluntariamente é agir de acordo com a nossa vontade-desejo, e que toda ação é voluntária, pois esta é premeditada pela razão. Logo, todas as minhas ações onde há influência da razão é voluntária. Por exemplo, se eu vou numa padaria e compro pão estou realizando uma ação. Com o padeiro, no entanto – e aqui está a chave da teoria libertária -, faço uma troca voluntária. Ele me dá o pão e eu o dinheiro, voluntariamente. Uma troca voluntária consiste em uma ação onde não há coerção sobre os indivíduos.

         A afirmação do título está correta, nem toda ação é voluntária, porém, essa palavra pode gerar certa ambiguidade, caso não seja definida adequadamente. Ao se dizer que uma sociedade libertária se basearia no voluntarismo, quer-se dizer, apenas, que se todas as relações intersubjetivas dentro desta sociedade respeitassem a lei de propriedade, então não haveria coerção, todas as ações seriam voluntárias, pois, partiriam sempre do princípio que estipula a vontade do próprio indivíduo, a autonomia da vontade.

         É dito, posteriormente, que os libertários afirmam que toda ação é voluntária, o que não é verdade, pois, nos casos em que um segundo indivíduo interfere agressivamente nas ações de outro de maneira coercitiva, de modo que o indivíduo afetado seja levado a chegar a finalidades que não deseja, então aí já não há mais autonomia da vontade, mas sim coerção, violência, violação de propriedade, heteronomia. A ação que o indivíduo afetado está exercendo, apesar de continuar sendo propositada e visando diminuir seu desconforto (ele cumpre o  que o agressor manda porque acredita que assim irá sofrer menos danos do que sofreria se não as cumprisse), não é voluntária, pois o princípio que estipulou a vontade que moveu a ação não partiu de si, mas sim de outrem, ou seja, ele está sendo coagido a agir de tal forma. Esclarecendo, toda ação é propositada e racional, mas disso não segue que a ação é voluntária, que o agente concorda, necessariamente, com a finalidade na qual a ação incorre.

 

Primeiramente, o fato de não haver coerção externa não anula a ação por necessidade. Ou seja, quando uma pessoa age para sobreviver, ela não está agindo voluntariamente. Ela está agindo porque do contrário deixa de existir.

         De fato, as ditas ações por necessidade – que imagino que sejam as fisiológicas, como se alimentar, beber água, urinar, dormir etc. – não têm relação direta com a ocorrência ou não de coerção externa. São ações cuja motivação é um fenômeno fisiológico, hormonal, acreditado ter sido desenvolvido durante a evolução para ajudar na manutenção do indivíduo (no sentido biológico do termo). Entretanto, incorre-se em um erro ao afirmar que quando alguém age para sobreviver, ela não está agindo voluntariamente. Como o texto se propõe a refutar o libertarianismo e está atacando as bases praxeológicas, o mínimo esperado é que seja usada a definição do Mises, exposta na introdução deste artigo. Com base nisso, não há qualquer motivo para acreditar que ações fisiológicas necessárias ou ações que visam a sobrevivência não são voluntárias, pois são sempre ações propositadas, sempre visando colocar a vontade em prática, reduzir o desconforto e aumentar o estado de satisfação, sem a interferência de outrem.

 

Ela não tem escolha real, suas únicas opções são sobreviver ou morrer.

         Um tanto quanto contraditório afirmar, na mesma frase, que a pessoa não tem escolha e que, ao mesmo tempo, possui duas opções: sobreviver ou morrer. Se há a possibilidade de escolher entre agir de uma determinada forma e viver e agir de outra forma e morrer, então há escolha real, limitada às duas ocasiões apresentadas. Dizer que a pessoa é coagida pelos próprios instintos, pela natureza biológica do ser, pelas condições adversas do ambiente ou por qualquer outra entidade não subjetiva é, também, falacioso, pois coerção implica em uso de força contra um indivíduo, o que pressupõe, necessariamente, pelo menos dois indivíduos, já que não se pode coagir a si mesmo.

 

Ninguém quer realmente morrer, ninguém pode fazer uma escolha dessas.

        Eu realmente não entendi o que o autor quis dizer com isso. De verdade. Cerca de 800 mil pessoas tiram suas próprias vidas, em vários países diferentes, anualmente[18], cerca de 11 mil no Brasil, sendo essa a quarta maior causa de morte entre jovens.[19] Não julgarei os motivos pelos quais essas pessoas agem de tal forma, mesmo porque isso não é tarefa da praxeologia, mas sim da moral, porém, continua evidente que se esse tipo de ação foi escolhido em detrimento de todas as outras, então isso significa que essas pessoas acreditavam que reduziriam mais seu desconforto agindo de tal forma do que continuando a viver normalmente. Claro que se a pessoa atingiu a finalidade dessa ação não é uma informação que pode ser conhecida por nós, pois não sabemos o que ocorre com o morto após a morte, exatamente. Da mesma forma, pilotos japoneses kamikaze da segunda guerra tinham plena consciência da sua dita “missão” em vida, sabiam do seu objetivo e sabiam que tudo acabaria ali, e ainda assim iam para a guerra com orgulho, por mais que tudo isso tenha sido causado por conta de uma lavagem cerebral cultural, com forte influência do Estado, aliás. O mesmo é válido para homens-bomba. O cerne do ponto é que os indivíduos possuem autonomia para decidir sobre a forma com que alocarão seus corpos no universo, ainda que essa forma implica na morte do indivíduo – desde que não agridam outros indivíduos com isso.

 

Portanto qualquer ação onde haja necessidade fisiológica para manter a sobrevivência não é voluntária, mas necessária. Comprar comida não é uma ação voluntária, escolher o que vai comer sim.

         Errado novamente. Não importa qual a fonte da motivação que levou o indivíduo a agir, se houve um propósito em sua ação, se ele pretendia alcançar um estado de satisfação diferente e abdicou de usar seu corpo de todas as maneiras diferentes daquela escolhida naquele momento, se não houve coerção e a individualidade e autonomia foram respeitadas, então foi uma ação humana racional, voluntária, no sentido de que ele tinha a possibilidade de agir de qualquer outra forma, ainda que isso acarretasse em prejuízos para si. É mais que óbvio, pela definição misesiana de ação humana, que a compra de comida e uma ação voluntária. Ocorrem, na verdade, duas trocas aí, ambas voluntárias.

         A primeira surge de si próprio, ao se dar conta de que o estado atual de satisfação não lhe agrada, que um estado de satisfação em que você possuísse comida talvez lhe fosse mais satisfatório, pois você sente fome e poderia saciá-la caso tivesse comida por perto, e que você pode despender de tempo e recursos para agir de forma a conseguir atingir este fim hipotético.

        A segunda ocorre quando você age de maneira a se comunicar com o atual possuidor de pão, demonstrando que você tem interesse no produto que ele tem interesse em vender. Caso ambos entrem em acordo sobre a transferência mútua do título de propriedade dos objetos envolvidos na troca, então aí ocorre a segunda troca, agora, uma troca intersubjetiva, a base do livre mercado. Repare que, mais uma vez, há apenas dois indivíduos envolvidos nesta relação, e ambos respeitam mutuamente o direito de propriedade um do outro, ou seja, se trata de uma relação em que não há coerção, apesar de poder ser uma relação em que uma parte foi motivada por uma necessidade fisiológica – que não é, por definição, coercitiva. Nada disso implica em as ações serem involuntárias, pois todas têm propósito, que é, em última instância, o aumento do estado de satisfação. No caso, comprando pão e se alimentando com ele.

 

Agir voluntariamente é ainda agir de acordo com a vontade, vontade é sempre totalmente racional. Agir para sobreviver é parcialmente racional, parcialmente porque eu preciso usar minha razão para encontrar uma forma de obter comida, e ainda parcialmente porque é uma ação da qual não tenho escolha (morrer não é uma escolha quando não se há total discernimento racional – que é o que acontece quando simplesmente não posso deixar de comer).

       Mises define, no começo de sua obra Ação Humana – como eu apresentei na introdução deste artigo –, a vontade como não significando mais que a faculdade do homem de poder escolher entre diferentes situações; preferir uma, rejeitar outra, e comportar-se em consonância com a decisão tomada, procurando alcançar a situação escolhida e renunciando a outra. Em momento algum ele afirma que a vontade deve ser sempre totalmente racional, mesmo porque, na maioria das ações, as vontades motivadoras não possuem justificativas totalmente racionais, mas sim, em grande parte, juízos de valor subjetivos e instantâneos, como ao estalar os dedos ou balançar as pernas enquanto usa o computador.

         Se tomarmos os instintos como constituintes da motivação de algumas ações, então boa parte delas seria, também, parcialmente racional, pois o critério do instinto, que daria o impulso inicial à tendência de praticar a ação, dividiria lugar com o critério da racionalidade, que julgaria as opções existentes e escolheria uma em detrimento das outras. Disso não segue, entretanto, que as ações necessárias para a sobrevivência são ações não voluntárias, sobre as quais você não tem escolha, pois isso contraria os dois conceitos usados na defesa do argumento: o de ação e o de vontade, pois ambos pressupõem que você tem a capacidade de formular juízos acerca das opções existentes e preferir uma em vez da outra.

De fato, há uma TROCA entre minha pessoa e o padeiro. Mas eu realmente agi voluntariamente? Eu agi porque eu queria? Penso que não.

         Pela própria definição de troca de Mises, que diz que uma troca é uma alteração voluntariamente provocada, como exposto na introdução, sim, você realmente agiu voluntariamente. Pela definição de ação, sendo o comportamento propositado, a vontade posta em prática, então sim, você agiu porque quis, neste caso em que não houve nenhuma coerção por parte de outros indivíduos (o que é redundante, pois coerção só pode vir por parte de outros indivíduos).

 

 Com o exposto acima temos de aceitar que algumas trocas são impassíveis de voluntariedade, justamente porque sua origem está além do controle da razão. Há aqui algo que parece ser insolúvel para a teoria libertária. Porquanto parece que algumas ações não dependem da única e exclusivamente da vontade, mas da necessidade.

         Não, apenas analisando o significado das palavras é possível chegar à conclusão de que todas as ações que apresentam as características expostas por Mises e que não são motivadas por coerção são, necessariamente, voluntárias. Poder-se-ia, porém, inferir que é possível existir uma troca não voluntária, como duas pessoas sendo obrigadas a trocar serviços ou mercadorias entre si por um terceiro, ou qualquer outro cenário do tipo. Ocorre que estas ações não são consideradas trocas, que pressupõe em si mesma a voluntariedade; e, ainda que pudessem, de alguma forma, ser assim definidas, isso não seria inferido do argumento que o autor apresentou, pois ele é totalmente contraditório, dadas as definições.

Precisamos entender que há um abismo entre ação voluntária e ação necessária. Se eu estivesse morrendo de fome, e firmasse um contrato para trabalhar feito escravo, ainda estaria agindo voluntariamente? De acordo com a teoria libertária, sim. Mas isso porque eles não distinguem voluntariedade de necessidade, não conseguem compreender que nem toda ação é voluntária.

         Sobre a primeira pergunta, que mais parece uma pegadinha, a resposta não é sim ou não, pois não se trata de uma dicotomia, já que contratos de escravidão, por definição, não existem. A firmação de um contrato válido só pode ocorrer se ambas as partes concordarem com todas as cláusulas, de maneira voluntária. Se houver coerção de qualquer lado – e friso, aqui, que coerção necessita ser uma ação interindividual, não podendo ser causada por uma sensação, por exemplo, como a fome –, então o contrato deixa de ser uma relação voluntária de troca e passa a ser uma relação coercitiva de imposição. Assumindo que ambos os lados concordem com todas as cláusulas de um suposto contrato de escravidão, então já não faria mais sentido chama-lo assim, pois escravidão pressupõe que o indivíduo escravizado não consente com aquilo. Da mesma forma, um contrato de estupro não existe, bem como um contrato de roubo, de assassinato, ou de qualquer outra forma de agressão, pois, se ambos os indivíduos concordam com aquilo, houve consentimento mútuo, o que exclui qualquer possibilidade de cometimento de agressão dentro dos limites do contrato.

         Porém, vou ignorar isso e imaginar que você quis dizer contrato de servidão. Neste caso, sim, se você firmar o contrato, seria uma ação voluntária, e isso não depende de que necessidades fisiológicas você está sentindo na hora. Claro que você pode ser impelido pela fome ou pela sede a desejar assinar o contrato, mas isso é uma resposta interna sua aos estímulos, de maneira a diminuir o desconforto, e a possibilidade de escolher entre assinar o contrato e viver e não assinar o contrato e morrer de fome é justamente o que torna a ação voluntária. A realização da ação não quer dizer que o agente concorda com ela, mas sim que ele considera que suas consequências lhe trarão mais satisfação e/ou menos desconforto que a situação prévia à ação.

         Exemplificando, quando um assaltante coloca uma arma na sua cara e lhe ordena entregar o celular e a carteira, você o obedece, não porque você concorda com a ação dele e quer fazê-lo feliz, ou porque você acha que ele usufruirá melhor dos seus bens do que você, mas sim porque você acredita que fazendo isso, terá uma chance de sair vivo dali. Foi uma ação propositada, isso é indubitável, porém não foi voluntária, mas sim coercitiva. Em outra possível ocasião, por outro lado, você poderia reagir ao assalto, pois você tem em mente que naquela ocasião, uma reação feita de determinada maneira pode fazer você sair ileso, talvez até neutralizando o assaltante. Pode-se, ainda, imaginar a situação em que você, ao ser abordado, percebe uma possível rota de fuga e acha que é melhor sair correndo em zig-zag em vez de confrontar o assaltante ou entregar seus pertences. Há, ainda, o caso em que você fica completamente paralisado, sem realizar, de fato, qualquer ação. São casos mais raros, em que há a perda total do controle sobre os músculos esqueléticos, devido à inibição causada no cérebro em resposta ao evento traumático.[20] Neste caso, sim, você não tem escolha alguma, não tem a capacidade de agir, de mover seu próprio corpo, apenas fica alheio.

        Todos esses exemplos servem para ilustrar que as ações continuam tendo propósitos, concordando você com elas ou não, pois você tem a capacidade de formular juízos sobre as possibilidades de ações e opta por aquela que acredita lhe trazer menos malefício, mas nem sempre você vai acertar, e nem sempre as ações realizadas por você estarão de acordo com seus próprios princípios, como no caso de obedecer ordens de um assaltante.

         Além disso tudo, Mises também disserta sobre as ditas ações necessárias, como a alimentação e a higiene, e sobre a preferência por escolhê-las em detrimento de outras ditas menos necessárias, como jogar futebol ou comer chocolate. É um erro admitir que a vontade de satisfazer as necessidades mais simples da vida e da saúde é mais racional, mais natural ou mais justificada, que a tentativa para obter outros bens ou amenidades. É claro que o apetite por comida e abrigo é comum aos homens e a outros mamíferos e que, como regra, um homem, ao qual falta comida e abrigo, concentra seus esforços na satisfação dessas necessidades urgentes e não se importa muito com outras coisas. [21]

         Enquanto todos os animais são incondicionalmente guiados pelo impulso de preservação de sua própria vida e pelo de proliferação, o homem tem o poder de comandar até mesmo esses impulsos. Ele pode controlar tanto seus desejos sexuais, como sua vontade de viver. Pode renunciar à sua vida quando as condições para a preservar parecem insuportáveis. O homem é capaz de morrer por uma causa e de suicidar-se. Viver, para o homem, é o resultado de uma escolha, de um julgamento de valor.[22]

Podemos colocar o problema em premissas:

1 – Ação pressupõe razão, a razão é uma ferramenta do ser consciente para procurar conforto.

         Correto. Toda ação é racional. Se um fenômeno humano ocorre apesar da razão, como os batimentos cardíacos ou os reflexos, então não são chamados ação humana, mas sim reações involuntárias (no caso do coração, ele reage aos próprios estímulos).

 

2 – O ser consciente precisa manter seu corpo, do contrário, morre, ou seja, deixa de ser consciente para virar matéria inorgânica.

         Manter o corpo não é algo necessário, nem logicamente nem deontologicamente – a não ser que seja assumida uma filosofia ético-moral que condene o suicídio, que eu presumo que não seja o caso –, já que é tanto possível quanto permissível acabar com a própria vida, ou, pelo menos, viver de maneira a se depredar fisicamente, seja lá por qual motivo for.

 

3 – A premissa anterior está explicitando algo claramente involuntário, pois não posso simplesmente não morrer por pura vontade, preciso fazer algo contra minha vontade para sobreviver.

         Errado. Como dito anteriormente, do fato de ser necessário agir de determinada forma para que se mantenha a vida (o que não quer dizer que a manutenção da vida é necessária) não segue que há involuntariedade nestas ações. Tratam-se de ações tomadas como boas para se chegar ao fim hipotetizado, assim como é feito com qualquer outra ação.

 

4 – Mesmo assim há ação, e eu posso remediar minha razão para atender as demandas do meu corpo, por mais que eu não quisesse ter que fazer isso.

5 – Portanto, algumas ações são involuntárias; eu ajo, mas não queria ter que agir, por conseguinte, ajo por necessidade (ajo porque preciso da minha razão para pensar em um meio de conseguir comida, mas, no fundo, eu não queria ter que fazer isso, então é uma ação involuntária[23]).

         Este ponto já foi respondido várias vezes. Tomar emprestado da casualidade o termo “voluntário” e usá-lo num texto sobre ação, vontade, desejo, não me parece mais prudente que o sociólogo criticando o físico nuclear pelo emprego do termo “massa crítica”. Como dito, mais uma vez, toda ação é racional e demanda juízos, que são formulados previamente a ela e no seu decorrer, e decidem sobre quais recursos serão alocados de quais formas para que se cumpram tais propósitos. Assim é que se dá a ação, e ela só passa a ser involuntária na medida em que você é coagido a agir de tal maneira, ou seja, na medida em que o princípio que rege o agir deixa de ser a própria vontade e passa a ser a vontade alheia. Sobre a última parte, minha dica é a seguinte: se você está agindo, mas não queria fazê-lo, mate-se. É a única forma de fugir de tudo isto.

Se é uma ação involuntária, segue-se que tudo a partir daí é involuntário também. Afinal, eu só comprei o pão para não morrer de fome ou passar fome. Embora esteja mais do que óbvio que escolher o que quer comer é bem diferente de escolher entre comer ou não. A primeira é voluntária a segunda de modo algum.Eu não comprei comida para satisfazer minha vaidade (pode acontecer também), mas o objetivo real é, por sua vez, satisfazer uma necessidade.

Mesmo questionamento que o parágrafo anterior, já foi respondido várias vezes anteriormente.

Uma coisa que é necessária ou inerente não pode resultar nada voluntário. Portanto, algumas ações humanas não são voluntárias; consequentemente, algumas trocas apenas aparentam ser voluntárias, mas, na verdade, não o são.

Organizando,

  1. Algo necessário ou inerente não pode resultar em algo voluntário;
  2. Portanto, algumas ações humanas não são voluntárias;
  3. Consequentemente, algumas trocas não são voluntárias;

Além do fato de não haver justificativa para algo necessário não poder resultar em algo voluntário (na verdade, se algo inerente não pode resultar em algo voluntário e se a capacidade de agir conforme a própria vontade é inerente aos humanos, então a capacidade de agir conforme a própria vontade não poderia resultar em algo voluntário, o que implicaria em dizer que não existe voluntariedade em ação alguma e que, consequentemente, todos são coagidos a fazer tudo), além do fato de manter a própria vida não ser nem logicamente nem deontologicamente necessário, além de não haver um critério objetivo na definição de ações necessárias, além de a conclusão contrariar analiticamente a própria definição de troca dada pelo autor criticado; além de tudo isso, a terceira conclusão não segue da segunda, é um non sequitur. Se alguns A são ¬V e se alguns A são T, disso não segue que alguns T são ¬V. É um raciocínio inválido, pois a estrutura formal está errada, sucumbindo na falácia da afirmação do consequente.

Alguns ancaps definem o capitalismo como um sistema de trocas voluntárias. Então, nesse caso, devemos excluir todas as trocas que eu realizei por necessidade (pois toda necessidade é involuntária), ainda que não houvesse coerção externa, havia o risco de eu deixar de existir se não realizasse tal troca. Logo, se capitalismo é um sistema de trocas voluntárias, então, comprar comida não pode ser atribuída ao conceito de capitalismo, pois o capitalismo é “trocas voluntárias” e como demonstrado comprar comida nem sempre é voluntário, e eu só realizo a troca porque há coerção interna (risco de desaparecer, cessar existência).

         Toda troca é, por definição, voluntária, o que não quer dizer que ela não seja condição necessária para alguma outra coisa. Gostaria de fazer um questionamento: tomar café da manhã, almoçar, lanchar e jantar são ações involuntárias, necessárias? Se sim, então não é possível ficar um dia sem realizar alguma dessas refeições? Se for possível, então não se pode dizer que são necessárias, a menos que o critério de necessidade seja explicitado. Caso seja respondido que a necessidade é a característica de ação condicional, sine qua non, indispensável para um determinado evento (no caso, a manutenção da vida), então volto a questionar: almoçar é uma ação necessária? Se sim, então não é possível viver todos os dias sem almoçar. Caso um indivíduo apenas tome café, lanche à tarde e jante, sem almoçar, ele está deixando de fazer uma ação necessária? Se o mesmo for aplicado às outras refeições individualmente, como podem ser chamadas de necessárias? O que é essa necessidade? Ficam os questionamentos.

         Aliás, coerção interna não existe, é uma expressão igualmente autocontraditória, pois coerção pressupõe iniciação do uso ilegítimo da força, violação de propriedade, não reconhecimento da autonomia, sendo todas ações impossíveis de serem feitas consigo mesmo, pois sempre se age conforme a vontade – a não ser nos casos em que o princípio da vontade se origina em outra pessoa que não o agente, como no caso do cumprimento de ordens coercitivas; quando isto ocorre, tem-se a heteronomia da vontade, e não autonomia dela.[24]

Como eu não posso optar entre deixar de comprar comida ou não, sem deixar de existir (ou seja, não tenho a liberdade de continuar vivo se não fazer) não pode ser uma ação voluntária. Já que voluntário é tudo aquilo onde posso deixar de fazer ou não e inexiste qualquer coação. E também não podemos nos esquecer que eu não escolho entre ter fome ou não, e isso, por si só, já contamina todo o consequente restante.

Em suma: não posso escolher entre ter fome ou não, portanto sua consequência, ou seja, a ação, também não é fruto de uma escolha; portanto, escolhas são voluntárias, ações nem sempre.

         Você pode escolher uma das opções “deixar de comprar comida” e “não deixar de comprar comida” e continuar existindo. A escolha que você fizer não fará com que você deixe de existir. Talvez a repetição da escolha faça com que você pereça e morra com o tempo, mas você não deixa de existir simplesmente por optar por não se alimentar. Imagino que não tenha sido isso o que o autor quis dizer. Se é necessário que se compre comida para viver, de qualquer forma, todos iremos deixar de existir, um dia. Então, de certa forma, não há como agirmos sem deixarmos de existir, algum dia.

         Se X é condição necessária para Y, é mais que óbvio que você não tem a liberdade de fazer Y sem antes fazer X, pois, se você assim pudesse agir, então X não seria condição necessária. Liberdade não significa poder fazer tudo, até o impossível. Essa é a definição de onipotência, e nós não temos esta característica. Seria absurdo dizer que o homem não é livre porque não pode, digamos drogar-se, sem sofrer as inevitáveis consequências consideradas por alguns como altamente indesejáveis.[25]

         Uma ação voluntária é aquela cujo princípio subjetivo do querer, isto é, sua máxima, contém a regra prática que determina a razão em conformidade com as condições do sujeito, o que implica em, necessariamente, ausência de coerção, de fato. Porém, como já explicado algumas vezes, não se pode coagir a si próprio, pois esta é uma ação que pressupõe dois indivíduos, assim como troca, conversa, cumprimento, servidão, empréstimo, argumentação. São todas ações intersubjetivas, impossíveis de serem realizadas sozinhas.

3– ARGUMENTO DE HOPPE NÃO É TRANSCENDENTAL

A premissa é a seguinte: Hoppe acredita que no ato de argumentar já está implícito o respeito ao direito de propriedade (ou melhor, direito de auto-propriedade). Supostamente a estrutura transcendental é aquilo que torna possível o ato de argumentar, ou seja, o respeito ao direito de propriedade deles próprios para poder expressar seus argumentos.

         O argumento de Hoppe demonstra que o reconhecimento da auto-propriedade é condição necessária para a realização da atividade argumentativa e, e como toda e qualquer tentativa de refutar esta ideia ocorre no curso de uma argumentação, verifica-se que qualquer tentativa de negar sua validade já a presumiria como correta, caindo numa contradição performativa, o que evidencia seu caráter transcendental, uma vez que não se pode negá-la sem antes aceita-la como certa.

         E a atividade argumentativa é mais do que “expressar seus argumentos”. Um robô pode ser programado para expressar determinados argumentos, até mesmo com um alto nível de interatividade ao conversar com o interlocutor, o que não faz com que isso seja uma argumentação. Argumentação é mais que simples proposições flutuantes, é uma ação que demanda que o outro indivíduo seja reconhecido como um ente exterior, um ser capaz de engajar numa argumentação de maneira a expor suas proposições, usufruindo dos meios necessários para tal com intencionalidade determinada.

Para mim argumentar, precisaria respeitar o uso que o outro indivíduo está fazendo de um meio escasso (lembrando que para os libertários, o próprio corpo é um meio escasso). Caso não haja respeito, não é uma argumentação, mas uma coerção, uma imposição à força. Qualquer regra que seja dissonante desse “axioma” transcendental seria, então, uma imposição forçada e irracional contra a propriedade alheia, eu não poderia mais justificar argumentativamente uma lei que negue esse direito exclusivo de uso sobre meios escassos.

         O corpo não é escasso para os libertários, ele é escasso por definição, já que é um recurso material. Como explicado na introdução, algo escasso não é algo que existe em poucas quantidades, mas sim algo finito, o qual não pode ser usado para suprir a duas demandas auto-excludentes simultaneamente. Você não pode levantar e abaixar seu braço ao mesmo tempo, é uma impossibilidade física, o que demonstra que seu corpo é um recurso escasso.

         Ademais, qualquer regra que contrarie a lei de propriedade não é uma “imposição forçada e irracional”, já que não existem ações irracionais, por mais que elas possam não ser racionalmente justificáveis.

Qual é o problema do argumento?

Bom basicamente ele diz que eu não posso iniciar uma agressão.

         Não. Ele diz que você cai em contradição se tentar justificar qualquer tipo de agressão argumentativamente. Dizer que não se pode iniciar uma agressão significa dizer que é impossível de se fazer, o que não é verdade. Talvez se quisesse usar o sentido deontológico do termo (o sentido de dever), porém, a ética argumentativa não imprime nenhum dever, ela apenas explicita um dever que já é preferido ser seguido ao se argumentar. No entanto, fiquei curioso para saber por que seria um problema um argumento que concluísse que não se pode/deve iniciar agressão.

O problema é que agressão não é “iniciação do uso da força”, mas sim fazer algo contra a vontade de uma pessoa. Se eu tocar numa pessoa, ela pode não gostar, e isso é agir contra sua vontade. Cobrar imposto também seria agir contra sua vontade.

         Esse é o problema ao qual me referi no começo do texto. O autor do texto altera o significado de uma palavra usada pelo autor criticado, atitude esta que pode, como falei no começo, provar que qualquer proposição não tautológica é falsa, dadas as definições dos termos. Além do mais, a definição dada incorre em um problema. Se uma pessoa A agride a pessoa B, e a pessoa B usa de força contra a pessoa A, então, segundo a definição dada, a pessoa B estaria agredindo a pessoa A, mesmo se estivesse agindo em legítima defesa, pois isto estaria indo contra a vontade de A, e a agressão foi definida como sendo algo feito contra a vontade de outrem. Da mesma forma, se eu peço para que você me entregue todo o seu dinheiro e você se nega, você está agindo contra a minha vontade e, portanto, me agredindo. Se o argumento quer ser atacado, então se deve usar as definições expostas pelo autor do argumento, e não alterar arbitrariamente as definições que não lhe convêm.

E ainda assim você tem direito a sua própria propriedade, você consegue argumentar mesmo que alguém faça algo contra sua vontade. Portanto, a argumentação não é uma prova transcendental da autopropriedade. Argumentar e agredir (agredir = fazer algo contra y que y não permita ou queira) não são fins conflitantes, o argumento demonstra a possibilidade das duas coisas ocorrerem logo é possível argumentar e agredir.

         Aqui há, além da mudança na definição de agressão, uma falácia do espantalho. Hoppe não afirma que não se pode argumentar enquanto é agredido, e seu argumento também não nos leva a crer isso. Não é impossível argumentar enquanto é agredido, mesmo porque, se fosse, boa parte das argumentações não seriam argumentações, já que ocorrem sob a jurisdição coercitiva de um Estado, o que é agressivo. O que não se pode fazer é o mesmo sujeito agredir e argumentar ao mesmo tempo; é uma impossibilidade prática, pois são ações cujas pressuposições são mutuamente excludentes – a ação de agredir desrespeita a autonomia do indivíduo, enquanto a de argumentar necessita o reconhecimento dessa autonomia. Isso sem levar em conta a definição inadequada de agressão, a qual não foi definida dessa forma por nenhum dos autores criticados até então.

4 – INCOERÊNCIAS

Vou listar algumas incoerências sem adentrar muito nelas, coisas que pretendo esclarecer futuramente.

a – Propriedade Privada é diferente de propriedade

         Imagino que seja feita a distinção mutualista de propriedade coletiva, individual, etc. No final das contas, não há justificativa racional para a alocação coletivista de um recurso escasso de alguém – a não ser que o proprietário desse recurso concorde. Neste caso, não há violação de propriedade, então pouco importa como você a chamará. Entretanto, se suas outras denominações de propriedades forem tais que permitem que propriedades, como casas, sejam expropriadas em nome de uma cooperativa, ou da sociedade, ou de um bem maior, então não se defende outra coisa além de violação de propriedade, de autonomia, de soberania individual. Porém, como não foi dissertado sobre isso aqui, não me prolongarei mais que isso.

b – Ética não é uma ciência totalmente lógica, é uma matéria social e não pode estar apartada das relações com o outro, e nisso consta muito os sentimentos humanos (e é a partir daqui que podemos começar a estabelecer o que pode e não pode fazer).

         A ética não é uma ciência, pelo menos não no sentido de ser comprovada através do método científico, com formulação de hipóteses, análises, experimentações, etc. Pode ser considerada ciência enquanto matéria do conhecimento, sim, mas não está no mesmo ramo do conhecimento que as ciências naturais, como a física ou a biologia. Não é totalmente lógica, pois se trata de um ramo preocupado em como as ações dos indivíduos devem ser, e, para isso, necessita de conhecimentos empíricos, como a existência de outros indivíduos e a escassez inerente à nossa realidade material. No entanto, o fato de a ética, em si, não ser puramente lógica não quer dizer que seus princípios não podem ser deduzidos à priori.

c – falta de leitura e senso crítico (fato comum entre os libertários ancap).

         Isso mais me parece um ad hominem do que qualquer outra coisa. Mas, se é para apontar esse tipo de erro, então aproveito a ocasião para expor minha opinião de que o autor do texto foi ou desonesto ao mudar, ridiculamente, as definições de palavras-chave presentes nos livros; hipócrita ao criticar a falta de leitura, mas demonstrar raso conhecimento sobre a ideia que está sendo criticada; descuidado escrever um texto pifiamente simplório com argumentos que não são nem sequer bons o suficientes para serem considerados ruins, com diversos saltos lógicos (o que me é surpreendente, porque não são nem mesmo falácias informais, como o ad hominem que ocorre, mas falácias formais, erros lógicos simples) e divulgar esse texto em grupos do Facebook, se intitulando o refutador do libertarianismo, sendo que a única coisa que foi feita foi um grande desperdício de tempo ao escrever um textão sem qualquer validade crítica. Caso isso não tenha sido um ad hominem, então seu pensamento de que falta leitura

d – espantalhos de ideologias diferentes (libertários atacam espantalhos de tudo aquilo que não é sua própria ideologia).

         Novamente um ad hominem, já que a crítica feita não é à ideia que os libertários defendem, mas sim à uma característica que alguns libertários com os quais o autor teve contato têm. Além do mais, o autor se mostra hipócrita, novamente, pois critica os libertários de atacarem espantalhos, mas fez exatamente a mesma coisa em praticamente todo o texto, ao se alterar o significado de várias palavras e continuar considerando os raciocínios nos quais os autores das ideias criticadas incorreram ao escreverem seus livros. E sobre atacarem tudo o que é diferente do que defendem, o fato de você criticar isso demonstra, novamente, sua falta de leitura – característica por você criticada no ponto anterior –, pois, se tivesse, de fato, compreendido todos os pontos da praxeologia e da ética argumentativa, compreenderia que qualquer pessoa que adote uma posição que se oponha a ela necessariamente terá que pressupô-la como válida para argumentar a favor de sua posição, o que a levará a cair invariavelmente numa contradição performativa. Da mesma forma, se você prova, na equação 2.x=4, que o valor de x é 2, você está provando, também, que o valor de x não é qualquer número diferente de 2.

 

e – acreditam que os recursos são escassos e ainda assim que é irracional um uso centralizado e prudente dos mesmos, argumentando que nas mãos descentralizadas das pessoas as coisas ficarão muito melhores. O que é uma incoerência do caralho. Ora, se os meios realmente são escassos, não seria mais racional usá-los de forma sábia e coletiva? Acontece que eles não pensam assim e ainda se pagam de “sabichões e super-lógicos”.

5 – UMA FALÁCIA NÍTIDA

Para os ancaps, ou um recurso é escasso ou é infinito. O que é uma sútil falácia da dicotomia. Ignoram que muitos recursos são abundantes.

         De todo o texto, acho que essa foi a parte que menos levei a sério. Já argumentei bastante até aqui, então não vejo problema, particularmente, em dizer que o autor não faz a mínima singela ideia do que está criticando, pois não foi capaz de entender nem mesmo o conceito mais básico sobre o qual toda a praxeologia e ética se apoiam. Digo isso para evitar que, numa possível tréplica, o autor passe alguns parágrafos dizendo que estou cometendo ad hominem aqui.

         De qualquer forma, explicarei mais uma vez o motivo de recursos serem escassos. Porém, antes disso, gostaria de frisar, novamente, que libertários não defendem que é irracional fazer X só porque X é uma ação tida como menos preferível às demais. Ação humana é necessariamente sempre racional. O termo “ação racional” é, portanto, pleonástico e, como tal deve ser rejeitado. Quando aplicados aos objetivos finais da ação, os termos racional e irracional são inadequados e sem sentido. O objetivo final da ação é sempre a satisfação de algum desejo do agente homem. É um erro admitir que a vontade de satisfazer as necessidades mais simples da vida e da saúde é mais racional, mais natural ou mais justificada, que a tentativa para obter outros bens ou amenidades.[26]

         Isto posto, vamos à escassez. Quando se diz que um recurso é escasso, está-se querendo dizer que ele é um bem material, como tudo o que existe fisicamente. O adjetivo “escasso”, neste sentido, não é, de forma alguma, quantitativo, pois não quer dizer que o objeto do qual ele é predicado existe em poucas quantidades, como quando dizemos que há escassez de água numa determinada região que sofre com a seca. Este termo é, na verdade, qualitativo, pois indica a qualidade que um determinado objeto tem de não ser infinito, ou seja, de ser limitado. Objetos finitos obedecem às leis da física que conhecemos, e tais leis não permitem que um mesmo objeto se comporte de formas mutuamente excludentes, como estar em dois lugares ao mesmo tempo ou, no caso das relações entre sujeito e objeto, serem usados para a concretização de duas finalidades autoexcludentes, como levantar e abaixar o mesmo braço no mesmo instante de tempo. Antes que se comece a pensar nas novas teorias da física quântica – já sempre alguém tira essa carte sempre que a discussão envolve algum campo do conhecimento ainda bastante desconhecido –, mesmo que se prove que é possível, de alguma determinada maneira, que um mesmo objeto esteja em dois locais ao mesmo tempo e possa ser usados para fins excludentes, isso mostrará apenas que há um clone daquele objeto, pois, na prática, serão dois separados, com características distintas (posição no espaço tempo, temperatura, energia interna) variáveis de acordo com o ambiente sobre o qual estão submetidos. Ainda serão recursos capazes de serem disputados por dois indivíduos diferentes que almejam, simultaneamente, atingir fins excludentes com aquela instância do objeto clonado. Isso ainda não poderia ser feito, continuaria sendo um conflito e, portanto, aquele objeto continuaria sendo um recurso escasso. Ainda que se possa conceber um universo em que os recursos fossem, de alguma forma, infinitos, de maneira tal que não fossem escassos, ainda assim o espaço ocupado pelo corpo do indivíduo agente e o próprio corpo que ocupa esse espaço seriam escassos, não infinitos, o que é suficiente – juntamente com a existência de outros indivíduos – para a possibilidade da ocorrência de conflitos. Caso se objete dizendo que a mesma infinitude dos demais recursos se aplicaria aos corpos, então seria um universo em que seria possível dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço, capazes de atingir a todos os fins existentes no mesmo instante e, dessa forma, incapazes de agir, pois toda a demanda seria atendida sempre. É um universo totalmente diferente do que vivemos, e uma norma de propriedade sequer faria sentido aí. Em suma, dizer que um recurso é escasso não significa, necessariamente, que esse recurso existe em poucas quantidades, mas sim que ele não é infinito, que não pode ser usado para atender a demandas autoexcludentes simultaneamente. Espero que isso tenha ficado claro. Criticar a praxeologia e o libertarianismo sem entender este conceito é como criticar a teoria quântica de campos da física moderna sem saber o que é vetor.

         Finalizo este texto com a esperança de que, primeiro, alguém tenha lido até o fim e, segundo, caso essa pessoa que tenha lido até o fim tenha lido o texto do Pino e se convencido por qualquer afirmação falaciosa, que tenha mudado de ideia, ou pelo menos se colocado para pensar, após ler o corrente texto. Ademais, ainda que ninguém tenha mudado de ideia lendo isto – o que acho que será o caso tanto do autor quanto de seus colegas de grupo –, se o atual texto foi capaz de elucidar algum questionamento ou trazer um conhecimento novo que instigasse alguém a pensar, ainda que tenha sido apenas uma pessoa, então meu trabalho já terá sido concluído. Não acredito em vencedores e perdedores numa discussão, ao meu ver, todos saem ganhando, tanto os interlocutores quanto os ouvintes, pois sempre se pode aprender algo do que foi dito, seja aprendendo que aquilo é o certo, ou que é o errado. Sem mais.

Resposta de Pino Creed ao texto acima:

Refutando o anarcocapitalismo DE NOVO.
As mulas fideístas ainda não superaram meu argumento contra a HIPÓTESE da ação humana (eles acham que eu tô negando que homens agem, são MUITO burros).

Não tive tempo ainda de responder os outros 4 pontos, por enquanto apenas a ação humana. Segue abaixo um esclarecimento do que DE FATO é meu contra argumento a hipótese de Mises, a resposta foi escrita num comentário da própria publicação dele, eis ela aqui:

Wohohoho… O que temos aqui, mais uma série de mal entendimento. Sobre o número 1: mesmo blábláblá de sempre só que um pouco mais elaborado. Você não entendeu o problema do zumbi filosófico e sequer pode responder ao per sophisma.
Gostaria de esclarecer alguns pontos antes: em nenhum momento neguei que homens agem, na realidade apenas apontei que é impossível derivar um axioma do fato de que estou a experienciar internamente meu próprio fenômeno de agir. Ação é fenômeno racional, a razão é a faculdade de começar por si mesma (isto é, espontaneamente) uma série de acontecimentos. Podemos concluir que seu fenômeno, ou seja, a ação é justamente essa força espontânea que gera uma série de acontecimentos no mundo. Em relação a mim, posso sim chegar a conclusão de que ajo e ter certeza de que isso sempre será assim enquanto for vivo e lúcido. Não é difícil percebermos que essa série de acontecimentos é sempre propositada, nada a contrapor; agora, a coisa fica diferente quando se trata de outra mente.
Respondendo sua pergunta: “Por que a limitação epistemológica em saber se há propósito nas supostas ações de outras pessoas faz com que o axioma da ação humana deixe de ser um axioma?”
Uma forma de testar a irrefutabilidade de uma proposição, assim como seu caráter axiomático e portanto absoluto, é tentar imaginar mundos possíveis onde a tese defendida permaneça verdadeira. Se a tese for verdadeira em todos os mundos possíveis, então é absoluta e axiomática.
Um axioma é uma verdade incontestável por causa de sua autoevidência, consequentemente é um axioma toda verdade que permanecer inalterada em todos os mundos possíveis.
A ação humana de Mises não é absoluta pelos motivos que estão listados a seguir:
I – A hipótese do zumbi filosófico;
II – Estou experiênciando todos os humanos (excedendo a mim) do ponto de vista externo, pois é impossível adentrar suas mentes.
III – Basear-se em nossa experiência interna para derivar uma verdade universal da qual a objetividade só pode ser externamente observada é cometer um falso silogismo (per sophisma figurae dictionis); eu precisaria internamente comprovar que outras pessoas agem conscientemente e me basear numa única exp. (a minha própria) não é o que se espera de uma tese que se diz científica (a praxeologia), é anti-científico. Ninguém descobre uma verdade universal, irrefutável e absoluta num único experimento, nem na filosofia e muito menos nas ciências em geral.
Passemos a explicar o número I.
Há um mundo possível onde só existem humanos que agem, mas há também um mundo possível onde todos são zumbis filosóficos, exceto a mim próprio; há um mundo possível onde pelo menos uma pessoa é zumbi filosófico, etc. As possibilidades são indefinidas, mas se há mundos possíveis assim, então o nosso mundo é um desses mundos possíveis. Alguém pode dizer que o nosso mundo possível é aquele em que todos agem, ora, mas aí tal pessoa terá o ônus da prova, ou seja, ele terá de provar que todos agem e, no entanto, cairá no problema II e III listados acima; e, portanto, não poderá provar por meio do externo um fenômeno interno (a ação é um fenômeno da consciência para com a exterioridade) baseado numa única experiência possível (sua própria mente). Sem falar que zumbis filosóficos podem muito bem acreditar convictamente que são humanos (já que fazem tudo que um ser humano faz, até argumentam, mas não conscientemente) e isso abre ainda mais a possibilidade de você, eu e qualquer um não serem mais do que um zumbi filosófico. Podendo ser tanto humanos quanto zumbis.
De qualquer forma, um defensor do “axioma” se encontra num emaranhado de sofismas e falácias que mais me parece insolúvel que consiga resolver o problema levantado. Assim deve assumir que a ação humana não é um axioma como pregam por aí, mas uma hipótese.
Lembremos que do ponto de vista externo, humanos e zumbis filosóficos aparecem em primeira pessoa e estão na mesma base referencial; ambos aparentam agir, mas um é consciente e o outro não. Para resolver o problema BASTA PROVAR QUE ALGUÉM É CONSCIENTE (mas não por meio do mero fato de argumentar, já que o zumbi também aparenta argumentar tanto quanto um humano argumenta, então a argumentação não pode provar que alguém é humano). Os libertários só precisam certificar que a ação de alguém é propositada ou programada, e isso não é possível (pelo menos não vi ninguém demonstrar um modo de fazer isso até agora, só usam esse papo furado de que se está argumentando é consciente e como demonstrado isso não prova absolutamente nada).
Com isso, as bases do libertarianismo anarcocapitalista estão ao relento e essa teoria sofista não passa de uma série de achismos fundada em opiniões e visão de mundo pouco ou nada racional.
Portanto, esse seu bullshit aqui cai por terra também: “Porém, se é dito que H→A(H) é verdadeiro, o que é autoevidente para o caso da ação humana, então sua validade não depende do quanto de conhecimento nós temos sobre cada um dos objetos em que a instância “H” se faz presente. Em outras palavras, não precisamos conhecer todos os indivíduos internamente para sabermos que se eles são humanos, então agem, da mesma maneira que não precisamos verificar todos os números possíveis para x para sabermos que a proposição (∀x ∈ R, x²≥0) é verdadeira, isto é, que dado um número x qualquer, se ele for real, seu quadrado é maior ou igual a zero. Isto é cognoscível a priori.”
Quanto as outras objeções, responderei uma a cada dia, por motivos de: falta de tempo.
Como a ação humana é a base do anarcocapitalismo, considerem essa teoriazinha infantil refutada duplamente.

EM BREVE PUBLICO A CONTRA ARGUMENTAÇÃO RESTANTE.

 

Minha resposta:

Ignorando as gratuitas ofensas do começo, não acho que você está negando que homens agem, acho, apenas, que não saber se as demais pessoas são indivíduos não é suficiente para se negar a validade do axioma. Não houve mal entendido, eu compreendi o problema do zumbi filosófico e a forma com que você acha que isso refuta o axioma da ação. Apenas discordo.
Seguindo sua explanação, ação é fenômeno racional, que demanda juízos, e a razão é a faculdade de iniciar, por si mesma, conscientemente, uma série de eventos. É isto o que diferencia os humanos dos demais seres. Se você não discorda que humanos agem, concorda que é um humano e, portanto, age propositadamente, mas põe em questionamento a validade do axioma por não saber se os demais ao seu redor são humanos ou meras máquinas programadas para se comportar como humanos, então não sei mais o que dizer, já expliquei da maneira que considero ser a mais clara possível.
Sobre sua resposta ao meu questionamento, I: dizer que a ação humana não é absoluta por conta da hipótese do zumbi filosófico é, no mínimo, inadequado, pois é justamente isso que está sendo questionado; II: Novamente, você apenas está expondo uma limitação epistemológica inerente ao ser humano, sendo que é exatamente o papel dessa limitação na inviabilização do axioma que está sendo questionado; III: A categoria da ação já é pressuposta para a sua própria compreensão por meio da razão. A praxeologia não se diz científica, as ciências da ação humana são radicalmente diferentes das ciências naturais, nas palavras de Mises. Seu caráter apriorístico já denota a não necessidade por comprovação empírica, como você imagina que deva ser feito, da mesma forma que não é necessário testar cada possível valor de x para saber que a a dita proposição ∀x ∈ R, x²=0 é verdadeira. Corrigindo o que você disse, ninguém descobre uma verdade universal, irrefutável e absoluta em experimentos. Certeza apodítica só existe na órbita do sistema dedutivo da teoria apriorística.
De qualquer forma, imaginemos os mundos possíveis em que há zumbis filosóficos e pelo menos um ser humano. Ainda, neste mundo, o axioma continuaria sendo verdadeiro, pois haveria um homem agente, mesmo ele sendo o único. Se houverem dois, o mesmo se aplica. Se não houverem humanos, porém, então sequer faz sentido falar sobre ação humana. É uma hipótese sem um sentido real. É como tentar entender a gravidade num mundo possível em que não há massa, sendo que a existência de massa é condição para que a lei da gravidade faça sentido. Ou, caso você fale sobre a contingência da física, é como tentar provar que a proposição matemática de que falei acima é válida num universo em que não existem números maiores que zero, sendo que isso é condição necessária para que ela seja verdadeira.
O problema de usar os mundos possíveis é sua própria limitação às leis da lógica. No vídeo que você mandou, o rapaz fala sobre proposições contingentes, as quais são verdadeiras em pelo menos um mundo possível e falsas em pelo menos um mundo possível, e dá o exemplo da proposição 2+2=4, que não pode ser chamada de contingente, pois não existe um mundo possível em que ela é falsa. Como eu disse, o problema dessa análise é que ela já assume que todos os mundos possíveis devem seguir as mesmas leis lógicas que regem nossa realidade, nosso pensamento. A mente humana é absolutamente incapaz de imaginar outras categorias lógicas diferentes das suas, como em um mundo em que uma coisa seja diferente dela mesma ou em que duas coisas somadas resultem em três, mas da nossa incapacidade de concepção de tal mundo não segue sua inexistência.
“Sem falar que zumbis filosóficos podem muito bem acreditar convictamente que são humanos (já que fazem tudo que um ser humano faz, até argumentam, mas não conscientemente) e isso abre ainda mais a possibilidade de você, eu e qualquer um não serem mais do que um zumbi filosófico. Podendo ser tanto humanos quanto zumbis.”
Você mesmo admitiu, no começo, que os humanos, enquanto experienciáveis em primeira pessoa, não são zumbis filosóficos, mas sim indivíduos racionais, pensantes, agentes. Os tais zumbis filosóficos podem, sim, acreditar e tentar convencer os outros de que eles são humanos, mas você, enquanto experienciando a si mesmo internamente, não é, por mais que não consiga provar para alguém.
“Lembremos que do ponto de vista externo, humanos e zumbis filosóficos aparecem em primeira pessoa e estão na mesma base referencial; ambos aparentam agir, mas um é consciente e o outro não. Para resolver o problema BASTA PROVAR QUE ALGUÉM É CONSCIENTE”
Já respondi isso algumas vezes, continuar invocando esse infalseável, como se nosso conhecimento sobre X alterasse a verdade sobre X (nos sentidos aqui tratados, sem malabarismos sobre física quântica e destruição de informação, por favor), não te ajudará muito.
“Portanto, esse seu bullshit aqui cai por terra também: (meu texto sobre o axioma não necessitar de que saibamos se outros são humanos)”
Não entendi por que isso cai por terra, poderia esclarecer?
Também ficarei com tempo curto nesta semana, não sei quando poderei responder às próximas tréplicas, mas, para finalizar, gostaria que você me apresentasse, caso possível, alguns exemplos de axiomas, verdades indubitáveis válidas para qualquer mundo possível. Valeu.

Após isso, Pino Creed aceitou minhas contra argumentações, deu seu ponto e lançou outro argumento contra a praxeologia, alegando a analiticidade do axioma da ação humana, com o qual eu tendo a concordar, até certo ponto.

 

Referências:

[1] Disponível em <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=151724215785014&set=a.122680795356023&gt;, acessado 26/10/2018.

[2] Disponível em <https://pastebin.com/YhL8awdr&gt;, acessado 26/10/2018.

[3] COPI, Irving Marmer. “Introdução à lógica”. (Trad. Álvaro Cabral, 2ª edição. São Paulo: Mestre Jou, 1978), pp. 106.

[4] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 35.

[5] Hoppe, Hans-Hermann, “Uma teoria do socialismo e do capitalismo“, (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013), p. 25.

[6] Ibid., p. 135.

[7] Extremamente importante notar que o termo escassez, no sentido libertário, não é uma palavra de relação quantitativa, pois não dá ideia do quanto há de um determinado recurso. Dizer que maçãs são escassas não significa dizer que há pouca quantidade de maçãs, mas sim que elas são finitas, e que cada uma delas não pode servir para fins excludentes simultaneamente.

[8] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 126.

[9] Hoppe, Hans-Hermann, “Uma teoria do socialismo e do capitalismo“, (São Paulo, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013), p. 21.

[10] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 37.

[11] Ibid, p. 130

[12] Ibid, p. 339

[13] Apenas enquanto sujeitos, pois podemos experienciar objetos (do conhecimento) externos ao nosso próprio corpo, como pessoas, por meio de intuições sensíveis.

[14] A palavra “ações” está sendo usada no sentido usual do termo, não no sentido defendido por Mises. Isso será explicado mais à frente.

[15] Kant, I., “Crítica da Razão Pura”, (Acrópolis, 2008), Refutação do idealismo, terceira observação em diante.

[16] Descartes, R., “Discurso do Método”, (São Paulo: Abril Cultural, 1973), quarta parte, §1.

[17] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 99.

[18] Organização Mundial da Saúde, 2015. Disponível em < https://www.prevencaosuicidio.blog.br/dados&gt;, acessado em 27/10/18

[19] Ministério da Saúde, 2017. Disponível em < http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/Coletiva-suicidio-21-09.pdf&gt;, acessado em 27/10/18

[20] O susto causa uma resposta numa via inibitória do núcleo central da amígdala para a substância cinzenta periaquedutal ventrolateral, que produz paralisia através da desinibição de saídas excitatórias da substância cinzenta periaquedutal ventrolateral para alvos pré-motores no núcleo magnocelular da medula. Em outras palavras, os neurônios que inervam os músculos param de responder. Ler mais em Tovote, P., et. al., “Midbrain circuits for defensive behaviour”, (Nature volume 534, pages 206–212 (09 June 2016))

[21] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 44.

[22] Ibid.

[23] A palavra involuntária, neste caso, não é o oposto de voluntária, no sentido de ação emanada a partir da própria vontade. Entregar a carteira a um ladrão é uma ação não voluntária, mas não é involuntária, pois involuntariedade pressupõe não uso da razão, e ela é usada ao se concluir que é menos pior entregar a carteira do que fazer qualquer outra coisa.

[24] Kant, I., “Fundamentação da metafísica dos costumes”, (Edições 70, 2007), “A heteronomia da vontade como fonte de todos os princípios ilegítimos da moralidade”, §1.

[25] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 339.

[26] von Mises, Ludwig, “Ação Humana“, (São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010), p. 42-43.

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