Verdades necessárias não existem

Geralmente eu não edito meus textos, mas esta edição se faz necessária. Escrevi um novo texto sobre o argumento presente aqui, e considero de extrema importância que se você tiver interesse por este argumento, leia o novo texto .

 


 

Vivemos num aparente paradoxo: estamos numa era em que é mais fácil que nunca conseguir informações, livros, artigos, conhecimentos, estudos e tudo mais, porém, ao mesmo tempo, admitimos que existem verdades necessárias, absolutas, nos enraizando em conceitos ortodoxos e retrógrados. Este dogmatismo nos faz crer cegamente que há verdades imutáveis, necessárias, absolutas, mesmo estando empiricamente latente que isto é algo inalcançável, visto a mutabilidade constante de nossa realidade. Considerávamos que a Terra era plana há um bom tempo, agora sabemos que ela é esférica, ma há bons argumentos que persistem com a primeira ideia. A construção das verdades segue de maneira dialética e é fácil perceber isso. Cada um tem sua verdade, cada um tem sua opinião, o certo e o errado são uma questão de ponto de vista e influência cultural. Devemos respeitar os pontos de vista dos outros, pois somos todos iguais em essência, diferimos-nos apenas em nossas aparências e forma de pensar. Nas palavras de Nietzsche, não há fatos eternos, nem verdades absolutas.¹

O asqueroso parágrafo anterior retrata bem o discurso do relativismo, o qual afirma, de maneira um tanto curiosa, a inexistência de verdades absolutas, necessárias. Segundo esta tese, não podemos desconsiderar os pontos de vista sobre um determinado assunto, ainda que sejam análises contraditórias. Como somos produtos do meio em que vivemos, somos moldados de maneira a crer que aquele conjunto de “verdades” as quais aprendemos são as reais verdades, e que tudo o que se difere disso está errado. Porém, como há várias culturas diferentes, cada uma teria seu conjunto de verdade, e seria impossível determinar qual deles é o correto, pois todos seriam válidos dentro de seu escopo. Mesmo a matemática, considerada por muitos um ponto fixo, imutável, já teve sua universalidade questionada, às vezes até com um viés político.

O objetivo deste texto é fazer uma análise, de um ponto de vista lógico-modal, da proposição segundo a qual verdades necessárias não existem. Esta análise se assemelhará àquela feita por mim sobre a máxima “toda regra tem uma exceção“, há algumas semanas. Podemos fazer uma análise informal desta proposição e facilmente percebermos que ela é contraditória, pois, se verdades necessárias não existem, então não seria necessário que esta proposição fosse verdadeira, pois ela mesma não seria uma verdade necessária. Seria possível, portanto, a existência de verdades necessárias, e como verdades necessárias são, de maneira redundante, necessárias, então se elas são possíveis, elas são necessárias. Preferi, entretanto, fazer uma análise modal para formalizar este raciocínio, mostrar o que é possível fazer com a lógica e dar uma treinada.

Acredito que seja importante salientar o seguinte: a análise aqui feita será puramente lógica, sobre o valor verdade desta proposição, no sentido literal. Não me ocuparei em abordar a influência disso em aspectos morais, éticos, culturais ou epistemológicos. Sei que várias pessoas utilizam esta máxima apenas como frase de efeito, sem crer literalmente em sua verdade universalmente, pois isto implica em uma ridícula e latente contradição, a qual será explicitada e formalizada aqui. A maioria das pessoas que usam essa frase se refere a campos específicos, dizendo que não existe uma moral absoluta, ou que todas as culturas devem ser igualmente respeitadas, que não há uma cultura mais desenvolvida que outra, ou mesmo que as verdades descritivas são meramente contingentes. Como eu disse, a análise será apenas formal.

 

Lógica modal

Antes de começar, penso que seja prudente explicar o que é lógica modal, ferramenta que usarei para esta análise. A lógica modal é um tipo de lógica que estuda argumentos contendo partículas modais, como necessidade, desnecessidade, possibilidade, impossibilidade e noções similares. O termo “modal” se refere aos modos de verdade, ou seja, se uma proposição é verdadeira contingentemente, necessariamente, se ela é falsa ou impossível. Há sub áreas da lógica modal que tratam de argumentos contendo partículas como dever, permissão, proibição, crença, etc. Trataremos apenas sobre necessidade e possibilidade aqui. Ainda assim, há vários sistemas modais e tipos diferentes de necessidade de possibilidade. Portanto, é necessário definir o que significa algo ser necessário ou possível, dentro da semântica aqui utilizada.

Dizer que algo é possível significa dizer que é logicamente possível que este algo ocorra (ou seja, não é contraditório que assim o seja). Por exemplo, é modalmente possível que eu viaje a 500 mil Km/s, por mais que seja fisicamente impossível. Não é uma contradição lógica algo com massa viajar acima do limite da velocidade da luz, mesmo apesar de este ser o limite de velocidade das coisas da nossa realidade. É logicamente possível que exista uma realidade em que as leis da física sejam diferentes. É este o sentido de necessidade aqui adotado. Em lógica simbólica, dizemos que a proposição P é possível representando um losango antes dela, desta forma: ◊P. Assim, podemos definir a necessidade e função da possibilidade: dizer que algo é necessário significa dizer que não é possível que este algo não ocorra (ou não seja), isto é, ¬◊¬P. O fato de um coisa ser igual a si mesma, por exemplo, é modalmente necessário, pois não pode existir uma realidade em que uma coisa x seja diferente de x. Trata-se de uma igualdade formal, cuja negação implica numa contradição. Dizer “x≠x” é um absurdo lógico, impossível de ser verdadeiro em qualquer mundo possível. Representamos a necessidade de uma proposição P com um quadrado antes dela, desta forma: □P. Dessa forma, conforme a definição feita, temos a equivalência (□P↔¬◊¬P)

Chamamos estas realidades possíveis de que falei de mundos possíveis. Um mundo possível é uma descrição consistente de como as coisas poderiam ter sido ou de como as coisas são.² Assim, se uma proposição é possível, dizemos que ela é verdadeira em pelo menos um mundo possível. A proposição “homens voam” é possível – ainda que talvez seja fisicamente impossível nesta realidade -, visto que não é contraditória, inconsistente. Se ela é possível, então ela é verdadeira em um mundo possível. Caso uma proposição seja necessária, então ela é verdadeira em todo e qualquer mundo possível. O fato de toda garça branca ser uma garça é necessário, verdadeiro em qualquer realidade possível, pois se funda no princípio de identidade. Trata-se de um juízo analítico. Isso quer dizer que não há um mundo possível em que ela seja falsa. Mesmo nos mundos possíveis em que não há garças, a sentença é verdadeira, pois se trata de um condicional (se x é uma garça branca, então x é uma garça), e caso o antecedente seja falso, o condicional retorna verdadeiro.

Dessa forma, se estamos trabalhando num argumento modal e chegamos à conclusão de que é possível que X, então X é verdadeiro em algum mundo possível. Igualmente, se chegamos à conclusão, em um mundo possível, de que Y é necessário, então Y é necessário em todos os mundos possíveis. É importante entender isso para compreender o argumento seguinte.

Recapitulando,

  • ◊P significa que P é verdadeiro em algum mundo possível (P é possível);
  • ◊¬P significa que P é falso em algum mundo possível (¬P é possível);
  • □P significa que P é verdadeiro em todos os mundos possíveis (P é necessário);
  • □¬P significa que P é falso em todos os mundos possíveis (P é impossível);
  • ¬◊P significa que não é o caso que P é verdadeiro em algum mundo possível, isto é, P é falso em qualquer mundo possível (P é impossível);
  • ¬□P significa que não é o caso que P é verdadeiro em todos os mundos possíveis, isto é, há pelo menos um mundo possível em que P é falso (¬P é possível);
  • Como podemos ver, □¬P é logicamente equivalente a ¬◊P, e ◊¬P é logicamente equivalente a ¬□P.

 

Verdades necessárias não existem

Seja P a proposição “X é uma verdade necessária”. Podemos representar isso como P := □X. Se conseguirmos provar que ela é verdadeira, independentemente de qual seja o X, então refutaremos a tese principal, segundo a qual não existem verdades necessárias.

Pelas operações modais, há três possíveis caracterizações para a proposição P: ou ela é impossível, ou ela é possível, ou ela é necessária (não se trata de uma disjunção exclusiva entre os dois últimos, pois algo necessário deve ser possível). Ora, a ideia da existência de uma verdade necessária não é ilógica, inconsistente, não viola qualquer lei do pensamento e não é inconcebível. Podemos concluir, portanto, que a proposição P não é impossível, na semântica aqui utilizada (nota A [esta e a outra nota serão usadas como referência na formalização abaixo]). Assim, pelo princípio de não contradição, já que não é o caso que ela é uma proposição impossível (não possível), ela é possível, pois se trata de uma dicotomia. Se ela é uma proposição possível, então ela é verdadeira em pelo menos um mundo possível.

Chamemos um mundo possível em que a proposição P é verdadeira de φ (nota B). Dentro deste mundo possível, é verdade que P. Porém, veja, a proposição P nos diz “□X”. Isso quer dizer que no mundo φ, é verdade que □X. Se neste mundo é verdade que □X, então X é verdadeiro em todos os mundos possíveis, pois uma proposição necessária em um mundo é verdadeira em todos os outros. Dessa forma, X é verdadeiro em todos os mundos possíveis e, consequentemente, é uma verdade necessária. Portanto, pelo menos uma verdade necessária existe (que é X). Se pelo menos uma verdade necessária existe, então a proposição “verdades necessárias não existem” é falsa.

 

Prova formal

Podemos formalizar o argumento acima da seguinte forma:

  • Def. □x := “x é uma verdade necessária”.
  • Def. (∀x)[Px] := “para todo x, x é P”.
  • Def. P := “□x”.
  • Def. {ψ} é um mundo possível qualquer.
  • Eq. (∀x)[Px] ↔ ¬(∃x)[¬Px]
  • Eq. □x ↔ ¬◊¬x
  • Eq. ◊x ↔ ¬□¬x

  1. Ass: (∀x)[(∃{ψ})[¬x]]
  2.    |  ∴ ¬(∃x)[¬(∃{ψ})[¬x]] (1, eq.)
  3.    |  ∴ ¬(∃x)[(∀{ψ})[x]] (2, eq.)
  4.    |  □¬P ⊻ ◊P
  5.    |  ¬□¬P (nota A)
  6.    |  ◊P (4,5: silogismo disjuntivo; ou, 5: eq.)
  7.    |       {φ} : P (nota B)
  8.    |       {φ} : □x
  9.    |  ∴ (∀{ψ})[x] (inferência de 8)
  10.    |  (∃x)[(∀{ψ})[x]] (inferência de 9)
  11. ∴ ¬(∀x)[(∃{ψ})[¬x]] (10 contradiz 3)

Comentários sobre o argumento acima:

  1. Esta é a assunção inicial, a de que verdades necessárias não existem. É isto o que queremos refutar. Esta linha diz que para toda e qualquer proposição x, existe pelo menos um mundo possível [ψ] em que a proposição x é falsa. Ou seja, não há qualquer proposição que seja verdadeira em todos os mundos possíveis.
  2. Fizemos uma substituição entre as operações do tipo (∀x)[Px] e ¬(∃x)[¬Px], pois são logicamente equivalentes. A primeira nos diz que para todo x, é verdade que x é P. A segunda nos diz que não existe um x que não é P. Ambas expressam a mesma ideia. Analogamente, 1. nos diz que para toda proposição x, há pelo menos um mundo possível em que x é falsa. 2. nos diz que não existe um x tal que não seja verdadeiro que x é falso em pelo menos um mundo possível. É confuso entender isso, por isso fizemos mais uma substituição.
  3. Fizemos uma nova substituição para simplificar. Substituímos uma expressão do tipo ¬(∃x)[¬Px] por uma do tipo (∀x)[Px]. Também são logicamente equivalentes. 2. nos diz que não existe um x tal que não seja verdadeiro que x é falso em pelo menos um mundo possível. Já 3 nos diz que não existe uma proposição x tal que ela seja verdadeira em todos os mundos possíveis. Esta é apenas uma reformulação sintática da nossa proposição original. Nada de importante foi feito até aqui.
  4. Esta é nossa premissa de que ou P não é uma proposição possível ou P é uma proposição possível. Ela é verdadeira independentemente de qual seja a proposição P, pois esta forma segue o princípio da lei de não contradição, segundo a qual ou uma proposição é verdadeira ou sua negação o é.
  5. Outra premissa. Como vimos na nota A, já refletimos e concluímos que a proposição P não é impossível por não constituir uma ilogicidade. Portanto, não é o caso que é necessário que P seja falso.
  6. Se não é o caso que é necessário que P seja falso, então P pode ser verdadeiro. Sabemos disso ou por silogismo disjuntivo entre 4 e 5 ou por equivalência de 5.
  7. Se P pode ser verdadeiro, então é possível que P. Se é possível que P, então existe um mundo possível {φ} qualquer em que P é verdadeiro.
  8. Se P é verdadeiro no mundo possível {φ}, então é verdade, neste mundo, que □x, pois esta é a definição de P.
  9. Se no mundo {φ} é verdade que □x, então x é verdadeiro em qualquer mundo possível, pois uma proposição necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis. Assim, para todo mundo possível {ψ}, é verdade que x.
  10. Se em todo mundo possível {ψ} é verdade que x, então há uma proposição x que é verdadeira em todos os mundos possíveis. Ou seja, existe uma proposição x tal que para qualquer mundo possível {ψ}, é verdade que x. É importante notar que esta inferência não cai na falácia existencial, pois já sabemos que existe um tal mundo possível. Esta existência não é derivada do quantificador universal.
  11. Portanto, se há uma proposição x tal que para qualquer mundo possível é verdade que x ((∃x)[(∀{ψ})[x]]), então a negação dessa proposição é falsa, pelo princípio de não contradição. A negação dessa proposição é ¬(∃x)[(∀{ψ})[x]], que é exatamente o que temos no ponto 3. Esta fórmula é logicamente equivalente à expressão “verdades necessárias não existem” e, portanto, esta proposição é falsa.

Referências:

  1. Sobre a citação de Nietzche: Sachregister – Volume 23 de Gesammelte Werke – Pág. 289, Friedrich Nietzsche, ‎Richard Oehler – Musarion, 1929.
  2. Gensler, H. J., “Introdução à Lógica“, (Editora Paulus , 2016), 1ª edição, pág. 275.
  3. Mortari, C., “Introdução à Lógica“, (Editora Unesp, 2017), 2ª edição.

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