Sobre regras e exceções

Esporadicamente ouvimos as pessoas falarem que toda regra possui uma exceção. É um ditado popular, às vezes falado como piada, em tom de sarcasmo, às vezes levado a sério. Mostrarei, neste texto, a invalidade lógica da proposição “toda regra tem uma exceção”. Claro que isso não é uma resposta a todas as pessoas que usam/usaram essa expressão, não quero parecer o tiozão que fica corrigindo tudo o que falam e levando tudo ao pé da letra, apesar de eu fazer isso quase o tempo inteiro. É apenas um exercício de lógica proposicional.

Antes de iniciarmos, é necessário que tomemos cuidado aqui, pois há mais de um sentido para o termo regra. Uma regra seria um princípio geral que serve como padrão, é aquilo que regula determinados eventos de um dado universo. Pode ser um juízo normativo ou descritivo. Caso seja normativo, então será uma norma, isto é, uma prescrição, que dirá como as coisas devem ser. É uma regra que alguém deve seguir, isto é, tem a obrigação, mas que é passível de não ser seguida. Regras de convívio, por exemplo, são normas que determinadas pessoas que cumprem determinados requisitos devem seguir (a saber, o desejo de viver em sociedade). Não é impossível que se viole uma dessas regras e se jogue lixo nas ruas, por exemplo.

Por outro lado, caso seja descritivo, então é uma regra segundo a qual as coisas são, isto é, trata-se de um juízo que descreve a realidade das coisas, o que independe de nossos juízos de valor, não como as coisas devem ser, segundo um parâmetro de correção. A regra segundo a qual todo evento possui uma causa, conhecida como princípio da causalidade, é uma descrição da nossa realidade, uma regra que não pode ser quebrada, no sentido de ser fisicamente impossível, diferentemente das regras normativas, que podem ser quebradas, apesar de isso não ser permitido.

Entretanto, para os fins deste texto, esta diferenciação não tem importância, pois, seja qual dos dois for o significado de “regra” usado na proposição, ela continua errada. Podemos fazer uma analogia e comparar uma regra a uma função matemática genérica f(x). Na matemática, seja qual for o valor numérico de x, ao ser submetido nesta função, alguma operação matemática será realizada em função dele e um resultado será obtido. É possível que o resultado não seja um número, como no caso da função f(x)=1/x, sendo x=0. É uma divisão por zero, cujo resultado não existe. O resultado não existe porque não faz parte do domínio da função, e, portanto, não devemos tratar isto como uma exceção no mesmo sentido da proposição principal. É possível, ainda, que uma função seja condicional, isto é, que seja válida apenas para determinados valores de x. A lei da gravitação universal, por exemplo, não aceita valores de massa ou distâncias negativas, porque isso não existe na realidade, é uma limitação física cuja representação matemática não faz sentido. De certa forma, aqueles valores que não fazem parte do domínio da função são exceção, no sentido de que apenas é permitido que se use qualquer x que não seja algum destes proibidos, porém, não é uma exceção no mesmo sentido da proposição que estamos tratando, porque é uma condição que já está determinada em sua forma.

Assim, uma função genérica não precisa ser matemática. Como estamos falando de regras gerais, nossa função pode ser do tipo f(x) = x usa azul, para x = meninos, e x usa rosa, para x = meninas. Nestes casos, isso significa que para todo x, se x for menino, então x usa azul, e se x for menina, então x usa rosa. Qualquer outra coisa que não seja menino ou menina não gerará nenhum resultado nesta função, é uma indeterminação.

Isto posto, podemos chamar de p a proposição segundo a qual toda regra possui uma exceção.

p := “Toda regra possui uma exceção.”

Ao analisarmos o que esta proposição quer dizer, podemos concluir que ela diz uma determinada coisa “E” sobre uma determinada classe de coisas “R”. No caso, R seria a classe de todas as regras, e E seria o predicado daquilo que possui uma exceção. Isso significa dizer que dado um x qualquer, se x for uma regra, então x tem uma exceção. Podemos formalizar a expressão acima da seguinte maneira:

Rx := x é regra
Ex := x tem exceção

(1) p := (∀x)[Rx⊃Ex]

Ora, se há o quantificador universal “toda”, então a sentença diz algo sobre todos os membros da classe de todas as regras e, portanto, é, em si, também uma regra. Se p é uma regra e p diz uma determinada coisa “E” sobre todos os membros da classe de todas as regras, então p também possui esta coisa “E” como predicado. Assim, sendo esta coisa “E” a ocorrência de uma exceção, a proposição p possui também uma exceção.

Uma exceção seria uma proposição que não segue a regra, isto é, uma proposição que admite a negação da regra. Assim, se a regra é tida pela formalização (1), sua exceção pode ser escrita da seguinte forma, conforme o quadrado das oposições da lógica aristotélica:

(2) ¬p := (∃x)[Rx∧¬Ex]

Isto significa que existe pelo menos um x que é uma regra e que não possui uma exceção.

Entretanto, se existe pelo menos uma regra que não possui exceção, e se isso é deduzido da proposição p, então há aí uma contradição: se toda regra possui uma exceção, não é possível que haja uma regra sem exceção! Dessa forma, se a proposição p é auto-contraditória, ela é notadamente falsa.

Podemos formalizar a prova da seguinte maneira:

Rx := x é regra
Ex := x tem exceção
p := “Toda regra tem exceção”

1. p := (∀x)[Rx⊃Ex]            (Premissa)
2. Rp                          (Premissa)
3. Ep := (∃x)[Rx∧¬Ex]          (1, Negação)
4. Ry⊃Ey                       (1, Exemplificação universal)
5. Ep                        (2,4, Modus Ponens)
6. (∀x)[Rx⊃Ex] ∧ (∃x)[Rx∧¬Ex]  (1,5, Conjunção)

A proposição 6 é contraditória, pois afirma tanto uma proposição quanto sua negação, o que viola o princípio de não contradição. Se da premissa 1 segue uma contradição, então a premissa 1 é falsa e, portanto, a proposição segundo a qual toda regra tem exceção é falsa.

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